Os policiais militares que mataram três trabalhadores rurais na noite da última quarta-feira (25) em uma fazenda de Cristalina, no Entorno do Distrito Federal, realizaram 43 disparos de arma de fogo durante a ocorrência. Especialistas ouvidos pela reportagem apontam que armas supostamente usadas pelas vítimas eram de baixo potencial e precisavam ser recarregadas a cada tiro.Aleff Nunes Souto, de 22 anos, Francisco da Silva Chaves, de 41, e Nelson da Silva Cardoso, de 38, foram mortos em uma intervenção policial da Patrulha Rural, da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO), enquanto caçavam javalis na propriedade em que trabalhavam. Os militares dizem que foram recebidos a tiros e revidaram, enquanto apuravam uma denúncia de roubo de gado. Familiares e colegas das vítimas, entre eles seus patrões, rebatem a versão da polícia e dizem que todos os mortos eram trabalhadores honestos.Durante a ocorrência, os policiais estavam em uma Amarok da PM-GO e as vítimas em duas motocicletas. O sargento Ângelo Máximo Morais deu 10 disparos e o soldado Bruno Martins Barros deu 25 disparos, ambos portavam pistolas 9 mm. Já o 3º sargento Reginaldo Matos Lima, realizou 8 disparos de carabina CT40.Foram apreendidas com as vítimas duas espingardas, uma calibre 28 e outra 36, e uma provável garrucha de calibre 28. A patroa das vítimas e proprietária da fazenda reconheceu apenas duas das armas como sendo dos trabalhadores.Os militares dizem, na versão deles, que outros atiradores fizeram disparos contra a viatura, mas eles teriam fugido pela mata. Proprietária da fazenda, que prefere não se identificar, diz que apenas os três haviam saído para caçar javali, atividade legalizada no País.Ao avaliar as fotos com as armas das vítimas, o instrutor de tiros Leder Pinheiro explica que elas são do tipo monotiro. “O atirador faz o disparo, tem de abrir a arma, retirar o cartucho, colocar novo cartucho para depois fazer novo disparo”, explica o especialista no assunto.O caçador profissional, Lindomar Dias dos Santos, diz que são armas muito antigas, que não costumam ser utilizadas. “É uma espingarda já bem antiga. Hoje, na caça profissional, a gente nem usa mais este tipo de arma. É mais o pessoal da zona rural, que não tem acesso a armamento novo, ainda às vezes utilizam essas armas, que eram do pai, do avô. São armas que já foram fabricadas há 40, 50, 60 anos atrás”, relata.Um terceiro especialista na área, de um importante clube de caça e tiro do Estado, mas que preferiu não ser identificado, explicou para a reportagem que as armas aparentam ser do tipo monotiro, mas que não é possível confirmar por fotografia.Recém nomeado como delegado da Polícia Civil de Goiás e responsável pela investigação do caso, Pedro Manuel Democh Assis Brasil, diz que ainda não é possível afirmar que as armas são monotiro, já que é necessário esperar o laudo da perícia, feito pela Polícia Científica. “As armas podem ter sido modificadas. Realmente quem irá dizer é a perícia. Difícil concluir alguma coisa só com base em imagens”, avalia.Pedro esteve em Goiânia nesta sexta-feira (27) para tratar de assuntos administrativos na Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) e deve ouvir os depoimentos de testemunhas na próxima semana, a partir de segunda-feira. Família cobra justiça por mortesAlém da dor da perda e do sentimento de injustiça, familiares dos três trabalhadores rurais mortos pela Polícia Militar relatam que corpos das vítimas estavam muito deformados. A doméstica Lúcia Maria Rosa, de 45 anos, prima da vítima Nelson, conta que ele estava com um buraco no pescoço, maxilar afundado, região da testa deformada e os braços e rostos com machucados parecidos com arranhões. Ela teme que isso seja sinal de tortura. A Polícia Civil aguarda o laudo cadavérico para saber sobre a situação dos corpos. Familiares também reclamam que não puderam fazer o reconhecimento do corpo pessoalmente, nem no Instituto Médico Legal (IML), em Luziânia, nem da Unidade de Pronto-Atendimento (UPA), em Cristalina, para onde os policiais levaram os três baleados.Nelson tinha três filhos, sendo dois adolescentes do primeiro casamento e um bebê. Um dos sonhos dele, segundo Lúcia, era terminar uma reforma que estava fazendo na casa própria. Ele estava havia três anos na fazenda, que trabalha com o plantio de grãos. Lucia conta que quando chegou na UPA ouviu um militar dizer: “Matei três pebas”. Ela critica o fato de os policiais terem levado as vítimas para a unidade de saúde, porque isso mudou a cena do crime. Além disso, questiona a versão de confronto. “Aquelas armas (das vítimas) são próprias para caça. Você não mata ninguém com aquelas armas. Eles falam nas reportagens que teve confronto. Onde? Tiros que deram neles foi tudo nas costas”, desabafa.A vítima mais jovem, Aleff, deixou a namorada grávida de 27 semanas e o enteado de dois anos de idade, que era considerado como um filho. “A gente só viu o corpo no velório e vimos uma bala na cabeça. Acho que mataram eles no local e nem deveriam ter tirado os corpos de lá. Queremos justiça e não tem nada a ver com dinheiro. Queremos limpar o nome dos nossos familiares e mesmo se fossem bandidos não podiam ter feito o que fizeram”, diz a irmã mais velha de Aleff, Michelly Nunes, de 25 anos.3 perguntas para Pedro Manuel Democh Assis Brasil Há um mês na Polícia Civil de Goiás, delegado responsável pela investigação da morte de três trabalhadores pela PM em Cristalina vai começar a ouvir testemunhas na próxima semana1 - Como foi feita a perícia se não havia corpos das vítimas no local? A perícia, para ela ser 100% idônea, de fato, precisa ser realizada com o local de crime preservado. Os policiais militares prestaram socorro aos envolvidos, segundo o relato deles, levaram (as vítimas) para a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) para serem atendidos. Então, a gente sabe que o local não foi preservado da forma como deveria ter sido. Ainda assim a perícia ocorre, mas com essas ressalvas, sabendo que o local do crime não está sendo preservado.2 - Como descobrir se a versão da polícia é condizente com a realidade?Tem algumas coisas que eu não posso te revelar porque são sigilosas. Mas o que pode colocar aí é que são investigações policiais, que por meio de diligências, ouvir os envolvidos, a gente vai tentar elucidar o fato de forma mais breve possível, para dar uma resposta para a população. Mas as ferramentas mesmo, o que a gente faz, eu não tenho orientação para dizer. A gente não pode armar os bandidos desse tipo de conhecimento. 3 - Esperar para começar a colher os depoimentos até segunda pode prejudicar a investigação? Não, porque as perícias já foram requisitadas. Quem fica a cargo da parte pericial é a Polícia Científica, não é a Civil. Então, eles já iniciaram o trabalho deles. Neste aspecto, o que a gente pode fazer é aguardar o resultado das perícias. E sobre outro vértice, o que está acontecendo, é esse trabalho de prospecção. A gente está colhendo os nomes das pessoas (relacionadas ao crime)BO trata caso como confrontoO boletim de ocorrência feito pelos policiais militares que mataram três trabalhadores rurais em Cristalina diz que o fazendeiro Paulo Luis Sachetti teria informado que era vítima de furto. A denúncia teria dado início à ocorrência policial que terminou com as mortes dos trabalhadores. De acordo com o boletim, Paulo teria dito que entre 13 e 14 pessoas estariam armados na sua propriedade. A informação do possível roubo, teria chegado até ele por uma ligação do seu irmão, que por sua vez, teria recebido a informação de um terceiro, ainda não identificado. Segundo o boletim, Paulo ligou para a patrulha rural e acompanhou a viatura da PM até certo ponto da estrada, mas em seguida voltou para casa. Só mais tarde ele teria ficado sabendo do desfecho da ocorrência. De acordo com o relato dos militares, a equipe foi recebida a tiros, não só pelas vítimas, mas por outras pessoas que teriam corrido para dentro da mata. “Equipe tentou se proteger, tendo em vista a quantidade de disparos de diversos locais”, diz trecho da versão dos PMs. Em uma das motocicletas das vítimas havia uma sacola, que os militares não chegaram a identificar. Os três baleados foram levados para a UPA, com sinais vitais, segundo os policiais, já que não havia sinal de telefone, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ou Bombeiros. A perícia no local do crime foi realizada às 4 horas, já de madrugada. A viatura, que tem uma marca de disparo no parabrisa, também será periciada.Ainda não foi identificada a pessoa que teria testemunhado o roubo de gado. Também não foram localizados os outros atiradores que teriam fugido pela mata, segundo a versão dos militares. O delegado responsável pelo caso, Pedro Manuel Democh Assis Brasil, explica que ainda não é possível afirmar se a versão dos militares é verdadeira. “A gente não tem condição de afirmar nem que a versão dos PMs está correta, nem que a versão dos familiares está correta. Isso só a investigação dirá.”ProtestoNesta sexta-feira (27) foi um dia de protestos em Cristalina, durante a tarde, uma carreata com vários carros passou pelas ruas da cidade pedindo Justiça. No final da tarde houve nova carreata. “Pedido de Justiça pelos caçadores que foram confundidos com pessoal que estava roubando gado e assassinados pela polícia. Esse aqui é o resultado. Esse é apenas um dos protestos (...) Apenas um em poucas horas reuniu esse tanto de carros. Está aí a indignação da população”, diz uma pessoa que filmou a carreata.Familiares das vítimas se reuniram com representantes da PM-GO na tarde desta sexta-feira (27). O prefeito da cidade, Daniel Vaz, escreveu nas redes sociais que a adminsitração buscou fazer o diálogo entre a família das vítimas e o Comando da Patrulha Rural. Os policiais garantiram durante a reunião que haverá uma investigação sobre o caso. “A nossa Cristalina está enlutada pela tragédia que aconteceu essa semana, resultando numa ação policial que teve a morte de três trabalhadores rurais, que eram pessoas idôneas, conhecidas na cidade e muito queridas pelas famílias e pelos amigos”, escreveu o prefeito.-Imagem (Image_1.2158228)