Entre janeiro e setembro deste ano foram registradas 257 ações policiais que terminaram com a morte de suspeitos em Goiás, uma média de 29 ocorrências por mês, praticamente uma por dia. No mesmo período de 2018 foram 189 casos do mesmo tipo, 68 a menos. Este aumento de 36% de ações policiais letais acontece em um contexto de crescimento do número de mortos pela polícia no Estado nos últimos tempos. Em cinco anos, entre 2013 e o ano passado, a quantidade de óbitos por intervenção policial cresceu 437%.Cada uma dessas 257 ações policiais deste ano teve pelo menos uma pessoa morta. Entre janeiro e setembro de 2018 a média foi de dois mortos por ocorrência. Já a quantidade de mortos do mesmo período de 2019 ainda é um mistério. Neste ano, a Secretaria de Segurança Pública de Goiás deixou de divulgar o dado, como fazia em anos anteriores, alegando ser “sigiloso”.Reportagem do POPULAR do último dia 15 mostrou que o Ministério Público de Goiás (MP-GO), que até o primeiro semestre permitia o acesso aos dados de morte pela polícia, também deixou de informá-los. Mudanças estruturais dentro do órgão e demandas prioritárias foram apresentadas como justificativa.Uma matéria do G1 do último dia 14 mostrou que Goiás é a única unidade da federação do Brasil que não informou dados de morte por intervenção policial para o Monitor da Violência, que é um trabalho de acompanhamento dos índices de violência no País.Apesar da falta de transparência no assunto, os dados disponíveis sinalizam um aumento nas mortes por intervenção policial. Só nos quatro primeiros meses de 2019, quando o MP-GO ainda repassava os dados, 25 pessoas foram mortas a mais em ações policias que no mesmo período de 2018.O aumento de 36% das ocorrências do tipo também indica esta tendência de crescimento de óbitos. Entre janeiro e setembro de 2018 foram 337 mortes em 189 ocorrências, uma média de 1,8 morto por ação. Neste ano são 257 ocorrências no mesmo período (veja quadro). Hipoteticamente, se a média de mortos for a mesma neste ano, o número de óbitos pela polícia nos primeiros nove meses de 2019 já seria de 458, mais que todo o ano passado, quando 424 morreram.JustificativaA Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) não respondeu ao questionamento da reportagem sobre o motivo do aumento de ações policiais com morte utilizando da mesma justificativa para não repassar dados estatísticos sobre o assunto: sigilo. O órgão diz que faz isso seguindo uma portaria de 2016, mas em 2017 e 2018 a SSP divulgava o dado, e também informações sobre as motivações.Em abril deste ano, o titular da SSP-GO, Rodney Miranda, disse em entrevista para o POPULAR que o aumento da periculosidade e do poder bélico dos criminosos é um dos motivos do aumento de mortes pela polícia. Além disso, ele citou a presença das facções criminosas.Já em 2017, o coronel Divino Alves, então comandante da PM, disse em entrevista que a grande quantidade de criminosos soltos, o aumento ao acesso ao armamento e a banalização da violência seriam motivos que explicariam o aumento daquela época. No mesmo ano, o então secretário de Segurança, Ricardo Balestreri, defendeu que a morte em confronto com a polícia é uma “atitude técnica de autodefesa” e que casos ilegais devem ser investigados e punidos.Na nota atual em que justifica o motivo de não responder ao questionamento da reportagem, a SSP-GO voltou a dizer que os dados de morte por intervenção policial estão “em construção, sob sigilo, uma vez que é necessária a conclusão do inquérito policial para apresentar análise e as informações pedidas dos casos”. No entanto, os índices criminais da Secretaria de Segurança de Goiás são formados a partir dos Registros de Atendimento Integrado (Rais), espécies de boletins de ocorrências virtuais, e são publicados mensalmente no site da pasta independentemente do término de seus respectivos inquéritos.De acordo com a nota da SSP-GO, as estatísticas criminais do ano passado estão passando por auditoria, por ordem do atual secretário, Rodney Miranda. Relatório mostra obstáculos para apuração de casosUm relatório da Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios de 2017 ao qual a reportagem teve acesso diz que “em boa parte dos casos” não há preservação das cenas de locais em que ocorreu morte por intervenção policial. Segundo o documento, isso estaria atrapalhando o esclarecimento dos fatos. Entre as alterações apontadas, está a remoção de arma de fogo e dos elementos da munição, como estojos e fragmentos. Neste sentido, o relatório aponta para a “necessidade das forças policiais de isolamento de preservar ao máximo o ‘status quo’ desses locais”. O documento então sugere algumas medidas para melhorar a investigação de ocorrências deste tipo. É sugerida a realização de perícia de local de crime mesmo quando o corpo do morto é removido e levado para o hospital. Também é aconselhado que a remoção da arma do suspeito, quando houver, só deve ser feita com justificativa escrita no Registro de Atendimento Integrado (RAI). É recomendado ainda que o comandante da ação policial com morte filme a cena onde ocorreu o confronto “imediatamente após cessados os disparos”. Esta filmagem deve ser realizada com um aparelho celular, que tenha um localizador, e deve mostrar a posição dos corpos e das armas, quando houver. As imagens devem ser repassadas para o delegado e perito que vai examinar o local do fato.Em julho deste ano, o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) questionou judicialmente o Estado para que as forças policiais preservem os locais de crime, o que não estaria acontecendo. Na ação são enumerados 11 casos em que a perícia foi prejudicada por causa de alterações no local. Entre os problemas apresentados estavam a retirada de armas, munições, corpos e veículos envolvidos do local. Outra sugestão feita no relatório é a aquisição de um Microscópio Eletrônico de Varredura (MEV) para fazer um exame residuográfico mais detalhado, que é o teste capaz de confirmar se há pólvora de disparo de arma de fogo na mão de uma pessoa. Atualmente, a Polícia Científica de Goiás não possui este equipamento e o exame residuográfico feito com uma técnica mais primitiva muitas vezes acaba sendo inconclusivo. Segundo artigo do perito criminal André Montanini publicado em uma revista da Associação de Peritos em Criminalística de Goiás (Aspec-GO), o MEV é usado para a “pesquisa e análise de micropartículas que ficam incrustadas nos corpos”. O aparelho é empregado em vários tipos de investigação, como para conferir os locais que um projétil passou. “(O MEV) já está sendo vastamente utilizado na prática forente em várias partes do mundo e em processo de ampliação do seu uso atualmente nos Institutos de Criminalística do Brasil”, diz trecho do artigo. Também é comentado no relatório que há demora para a conclusão de inquéritos porque ficariam dependentes de provas materiais, como laudo de exame de confronto microbalístico, que identifica a arma de onde o projétil saiu, e de local de morte violenta, que demorariam para ser finalizados pelo Instituto de Criminalística. Apesar do relatório ter sido preparado em gestões anteriores do governo estadual, da secretaria e das polícias, suas informações são um retrato da investigação de mortes pela polícia em um contexto de crescimento desse tipo de ocorrência. Diminuição com casos polêmicosA repercussão na imprensa de casos de morte por intervenção policial em que não houve legítima defesa pode colaborar para a diminuição de ações policiais com óbito. É o que avalia um relatório da Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios de Goiânia de 2017 ao qual a reportagem teve acesso. Ao analisar os dados de morte pela polícia em 2017, é feita a “correlação entre eventos de ressonância midiática e o decréscimo de intervenções policiais com resultado morte”. Ou seja, a maior divulgação de casos de violência policial com óbito coincide com a diminuição da letalidade policial nas estatísticas. O documento cita como exemplo a morte do estudante Roberto Campos da Silva, de 16 anos, em abril de 2017, que teve a casa invadida por policiais à paisana, os P2, que segundo as investigações o executaram e balearam seu pai. O crime ficou conhecido como Caso Robertinho. “No mês subsequente (a morte de Robertinho), maio, ocorreu uma significativa redução do número de intervenção com resultado morte civil”, diz o relatório, que lembra que a prisão dos policiais envolvidos foi “veiculada com ênfase pelos veículos de comunicação.”Ainda no documento é citada a morte do marceneiro Wallacy Maciel de Farias, de 24 anos, no início de setembro. O policial responsável pelo seu homicídio foi indiciado tanto pela PM, como pela Polícia Civil. Naquele mês também houve queda de intervenções policiais com morte. O relatório ao qual a reportagem teve acesso também realiza uma espécie de ranking dos batalhões mais envolvidos em ações com morte. Segundo o documento, a Rotam, o Choque e o Giro são responsáveis por 59% das mortes por intervenção policial que ocorreram durante serviço em Goiânia entre janeiro de 2016 e novembro de 2017. SSP não responde questionamentos da reportagemA Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás (SSP-GO) não respondeu nenhum questionamento sobre as informações tratadas nesta reportagem. Em nota, o órgão diz que “todos os dados solicitados são estratégicos e sigilosos”. A pasta usa como justificativa a Portaria nº 750/2016 que “regulamenta e salvaguarda de assuntos sigilosos produzidos e custodiados pela SSP”. Ainda na nota, a secretaria cita o inciso IV desta portaria que diz serem sigilosas as informações “referentes a investigações policiais, a sindicâncias e a processos administrativos disciplinares, enquanto não concluídos”. De acordo com a SSP, a portaria tem respaldo na Constituição Federal. Na nota, o órgão cita a Lei Federal nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que informa que cabe aos órgãos assegurar “a proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade, integridade e eventual restrição de acesso”. Resumidamente, os questionamentos enviados para a SSP via assessoria de imprensa e que não foram respondidos são os seguintes: Qual o motivo do aumento de 36% das ocorrências policiais com morte entre 2018 e 2019?; qual a justificativa para a SSP ser o único Estado do País que considera sigilosos os dados de morte por intervenção policial?; segundo relatório interno da Secretaria de Segurança de 2017, “em boa parte dos casos” de ocorrências policiais com morte não está ocorrendo o isolamento e preservação do local da ocorrência. Por que essa situação ocorre e como a SSP pretende fazer para que não ocorra mais?; a SSP pretende comprar um Microscópio Eletrônico de Varredura, passar a filmar cena do crime em que houve confronto e realizar perícia de local de crime nesses casos, mesmo quando o corpo foi removido para o hospital?; por que o Giro, o Choque e a Rotam se destacam em ocorrências com morte?; qual o motivo da redução do setor de estatísticas da secretaria e como garantir auditorias dos dados com menos mão de obra?