Completados em 2022, os cem anos da Ponte Epitácio Pessoa, sobre o Rio Corumbá, entre os municípios de Pires do Rio e Urutaí, passarão ao largo de comemorações. Um dos mais importantes elementos remanescentes da história ferroviária em Goiás, o patrimônio público, tombado em níveis municipal e estadual, está entregue ao abandono, tomado por vegetação. Procedimento aberto pelo Ministério Público do Estado de Goiás tenta encontrar meios de resgatar a memória cultural da travessia que modificou a economia e o estilo de vida da região.Localizada no município de Pires do Rio, a cerca de nove quilômetros da sede da localidade, a Ponte Epitácio Pessoa foi construída em um ano (junho de 1921 a julho de 1922) para dar continuidade à Estrada de Ferro Goyaz. Seu nome homenageia o presidente que governava o Brasil na época. A sua conclusão possibilitou a criação da estação ferroviária de Pires do Rio, cidade que surgiu naquele ano sob a influência da estrada de ferro e ganhou o nome em alusão ao então ministro de Viação, José Pires do Rio, um afamado construtor de ferrovias.A linha tronco da Estrada de Ferro Goyaz foi aberta a partir da cidade mineira de Araguari, onde já estavam os trilhos da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro criada em 1872, em Campinas (SP), para garantir a expansão da cultura do café. O primeiro trecho da E.F. Goyaz, com 234 quilômetros de extensão, seguiu até Roncador, hoje município de Urutaí, onde foi entregue uma estação em 1914. O local permaneceu como ponta de linha até 1922, quando a Ponte Epitácio Pessoa, composta de quatro lances, foi inaugurada.Para que a ponte fosse erguida, o governo brasileiro importou estruturas metálicas dos Estados Unidos e da Europa, em especial da Bélgica. Não por acaso, o hino da cidade de Pires do Rio faz alusão à “ponte belga”. José Pires do Rio visitou pessoalmente as obras em agosto de 1922, e, em Roncador, “em nome da população, foi saudado pelo senhor Moysés Sant’Anna”, como menciona reportagem de O Estado de S. Paulo. O escritor Moysés Sant’Anna era um renomado jornalista na época.O tombamento da ponte por leis municipal e estadual ocorreu com dez anos de diferença, respectivamente em 1985 e 1995. Nos quase 40 anos que se passaram desde a movimentação inicial, nada foi feito para preservar a sua história. “Em nossa cidade há um anseio grande de que a restauração aconteça, já ouvimos promessas e está sempre no ar a pergunta: por que não?”, questiona o gestor cultural Paulo Sampaio, que durante 11 anos trabalhou no Museu Ferroviário de Pires do Rio e ainda hoje é servidor municipal.Pesquisador sobre o tema, Paulo Sampaio guarda parte das informações que formam a memória da Ponte Epitácio Pessoa, como fotografias e documentos da época. “O valor histórico é de grande importância para toda a região porque ela foi um canal de desenvolvimento”, explica o gestor cultural. Em sua opinião, uma restauração da ponte depende de um esforço conjunto que envolveria não apenas a administração de Pires do Rio, mas também a gestão estadual e o Ministério Público. Trilhos foram fundamentais para a formação da regiãoQuando os trilhos da estrada de ferro chegaram pela Ponte Epitácio Pessoa, havia um amontoado de casas chamado Rua do Povo, um pouso de tropeiros na fazenda Brejo ou Brejão. A partir da doação de terras da E.F. Goyaz, surgiu a localidade de Pires do Rio, que tem um marco de fundação de 1922, mas só foi emancipada de Santa Cruz de Goiás em 1930.Os trilhos não somente conectaram a região com o restante do país, carregando riquezas e fomentando o desenvolvimento. A linha férrea transportou sonhos e ideais e mudou o comportamento da população, marcando profundamente a história local. Como já vinha acontecendo em outras cidades, como Catalão e Ipameri, a chegada dos trens representou uma ruptura entre o passado rústico e rural para o prenúncio da modernidade.Perícia constatou que parte da estrutura segue preservadaHá três anos e meio atuando na comarca de Pires do Rio, o promotor de Justiça Marcelo Amaral instaurou procedimento para apurar o descaso em relação à Ponte Epitácio Pessoa. “É um dever do Ministério Público. As pessoas sabem da importância da ponte e da necessidade de sua preservação. É preciso reconstituir suas características históricas para que a população tenha acesso e a conheça”, justificou. Depois de visitar pessoalmente a ponte, o promotor de Justiça solicitou uma perícia estrutural. “A minha preocupação foi garantir a existência da ponte. Externamente seu aspecto é precário, o que pude constatar nas várias vezes em que estive no local, mas a perícia demonstrou que sua mesoestrutura está preservada, como os pilares de sustentação. Ela é subvalorizada e pode ter uma visitação turística e cultural. É um patrimônio que não podemos deixar perecer”, diz Marcelo Amaral. O promotor de Justiça relata que, para chegar à ponte, é preciso atravessar propriedades privadas e muito mato, com certo grau de dificuldade. Um apaixonado por história, o promotor de Justiça atua também na área do meio ambiente. Em uma das últimas visitas que fez à ponte, ele constatou nas proximidades dragas em operação retirando areia do Rio Corumbá que, segundo ele, está em processo de assoreamento. “Fui ver uma coisa e achei outra, também muito grave.” Na ocasião, a Polícia Militar foi acionada, os responsáveis autuados e as dragas apreendidas.” Como os equipamentos permaneceram no rio, pela dificuldade de locomoção, voltaram a operar longe da vista das autoridades, como constatou o POPULAR esta semana. Marcelo Amaral tem esperança de fazer da Ponte Epitácio Pessoa um local valorizado, com acesso público, como já ocorre com o Museu e a Estação Ferroviários de Pires do Rio. “A missão do MP é tentar, para isso, uma solução consensual na via administrativa. Caso não ocorra, o meio é a interposição de ações judiciais cabíveis”. O promotor de Justiça acredita que elas não serão necessárias. “O Estado de Goiás não nega a necessidade de resgate dos elementos históricos e culturais e de preservação. O que vamos buscar a partir de agora é uma solução conciliatória para manter viva a ponte conforme as suas características originais. Acredito que teremos novidades nos próximos meses.” Prefeitura justifica que faltam recursos Chefe de gabinete da prefeita de Pires do Rio, Cida Tomazini (União Brasil), Charles Rincón disse ao POPULAR apenas que “a ponte deveria ser restaurada, mas infelizmente não temos o recurso”. Em nota, a Secretaria de Estado da Cultura (Secult) explicou que, embora a Ponte Epitácio Pessoa seja um bem patrimonial tombado pelo Governo de Goiás, ela é de propriedade do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), responsável pelo acervo da extinta Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), que absorveu a E.F. Goyaz.Conforme a Secult, o estado de conservação da ponte vem sendo acompanhado pela pasta ao longo dos anos, como comprovam “vistorias e relatórios”. Em 2013, a Superintendência de Patrimônio Histórico, Cultural e Artístico da Secult teria orientado a Câmara de Vereadores de Pires do Rio para a “necessidade de realização de projeto de restauro da ponte com a requalificação da área em que ela encontra-se inserida”, o que garantiria o acesso da comunidade local. De acordo com o órgão, foi explicado aos representantes da cidade a necessidade de estabelecer parcerias para a viabilização dos serviços de restauro/requalificação tendo em vista a diversidade de atores envolvidos: União (proprietária), Estado de Goiás (ente político que tombou o bem como patrimônio cultural) e Prefeitura de Pires do Rio (local onde está o bem, também tombado pela gestão municipal). Questionado sobre o assunto, o DNIT não respondeu ao POPULAR. Iphan diz que responsabilidade cabe a Pires do Rio e ao GovernoA Ponte Epitácio Pessoa não é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A superintendência regional do órgão em Goiás explicou que, como o monumento já possui tombamento nos níveis municipal (Lei 1.484/85) e estadual (Lei 12.675/95), “já detém instrumentos que garantem a proteção, cabendo a essas instâncias as medidas devidas para sua preservação”. O Iphan ressaltou que prima pela preservação da memória ferroviária no estado e que, em 2009 e 2014 restaurou, respectivamente, as estações de Pires do Rio e de Urutaí. “O Iphan possui uma rotina de monitoramento dos bens valorados, no estado de Goiás. São elas: as Estações Ferroviárias de Pires do Rio, Vianópolis (Tavares, Ponte Funda e Caraíba), Goiandira, Silvânia, Urutaí e a Estação Ferroviária de Goiânia. Todas essas foram restauradas pelo Instituto e após a entrega das obras tem sido realizado contato com os gestores dos municípios, de modo a esclarecer e sanar qualquer dúvida quanto à preservação dessas estações”, enfatizou o órgão.Em abril deste ano, o Iphan recebeu do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG) uma solicitação para o tombamento e a restauração da Ponte Epitácio Pessoa. No ofício, o presidente Jales Guedes Coelho de Mendonça reforça que o bem histórico está abandonado e “necessita urgentemente de medidas restaurativas”. Em resposta, o Iphan reconhece o valor histórico da ponte e sua importância para a ocupação do território goiano, mas afirma que cabe ao município de Pires do Rio e ao Governo de Goiás as medidas de preservação. O IHGG renovou seu pedido no mês de julho e a resposta ao ofício ainda está sob análise.