Pelo menos nos últimos sete anos, mães e pais em Goiás passam aperto na hora de buscar atendimento médico de urgência ou emergência para seus filhos. O trabalho em rede do Sistema Único de Saúde (SUS) não tem funcionado e o resultado é a superlotação das unidades, falta de leitos de internação e de médicos para o atendimento secundário, especificamente nas unidades municipais. Enquanto sobram vagas para as consultas nos ambulatórios- o tratamento primário-, a outra ponta do sistema está em decadência. O Hospital Estadual Materno-Infantil Dr. Jurandir do Nascimento (HMI) opera acima da sua capacidade mesmo tendo diminuído os atendimentos.Médicos pediatras que atuam na rede pública explicam que a questão não é matemática, pois o problema seria a falta de giro de leitos. Ou seja, as internações têm ficado mais demoradas porque os casos têm sido mais complexos. Os profissionais ouvidos pela reportagem afirmam que os pacientes têm chegado ao HMI em estágios avançados das doenças e a explicação seria a falta de atendimento primário e secundário. Sem os cuidados necessários no início dos sintomas ou mesmo de receber o diagnóstico da doença, há o agravo.Segundo os técnicos da saúde ouvidos pelo POPULAR, a relação dos atendimentos deve seguir uma pirâmide. De tal forma que a base é o atendimento primário em que se estima ser a necessidade de 80% dos pacientes e se refere ao acompanhamento, no caso, das crianças e adolescentes. Outros 15% dos casos são de importância secundária, com tratamentos de urgência e emergência de média complexidade, que, em Goiânia, é realizado pelo Cais Campinas. Apenas os últimos 5% é que deveriam ser destinados aos hospitais, por se dedicarem aos casos de média e alta complexidade.O problema também está no serviço de urgência nos municípios, em que há escassez de atendimentos. A maior dificuldade é encontrar profissionais médicos para atuar. Atualmente, a Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia (SMS), por exemplo, possui apenas 19 pediatras no serviço de urgência, no Centro de Atendimento Integrado de Saúde (Cais) Campinas. Em março deste ano, os médicos no local realizaram 4.182 atendimentos. Já em todo ano de 2018 foram 75.076, ou seja, uma média de 6.256,3 por mês.Ou seja, levando em consideração o mês passado, há um recuo na quantidade de atendimentos realizada no serviço municipal. Em comparação, também em março deste ano, o HMI registrou 2.370 atendimentos, segundo informado ao POPULAR na semana passada. No entanto, a estimativa da unidade é de que apenas 1.256 atendimentos deveriam ter ocorrido no local, por se tratar de casos de média e alta complexidade, tal qual a característica do hospital. Os outros 1.114 atendimentos foram classificados como azuis ou verdes, que deveriam ser atendidos no Cais Campinas ou mesmo nos ambulatórios municipais, como os postos de saúde.Os números são diferentes dos apresentados pela Secretaria Estadual de Saúde (SES). Segundo a pasta, os atendimentos em urgência e emergência avaliados, somente em 2018, atingiram o patamar de 49.461 consultas, com média de 4.121 por mês. “Esse valor tem se mantido, posto que nos dois primeiros meses do corrente ano, o hospital realizou 7.211 atendimentos de urgência e emergência. No que diz respeito aos atendimentos ambulatoriais, foram realizados 33.307 atendimentos somente em 2018”, informou em nota.InfluênciaVálido ressaltar, porém, que o índice pode sofrer variações sazonais, a depender de vários fatores, como a existência de um surto de determinada doença. Ainda com dados de março, em 12 noites não houve médico plantonista e em outras 10 havia apenas um. Para se ter uma ideia, dos 12 médicos disponíveis no plantão noturno, apenas 7 estiveram entre os escalados. Além destes 19 profissionais na urgência, há 52 pediatras da SMS que atuam nos ambulatórios. Nesse caso, das 10,2 mil consultas ofertadas no mês passado, apenas 3,2 mil foram cumpridas. Pediatras querem segurança para ir para os CaisA razão da falta de interessados em atuar no atendimento de urgência em pediatria nas unidades municipais é multifatorial, segundo a presidente da Sociedade Goiana de Pediatria (SGP), Marise Tófoli. Ela explica que apenas aumentar o salário dos plantonistas não vai convencer os médicos a atuarem nos locais. “Falta estrutura de trabalho. Isso já vem desde as gestões anteriores, não é de agora. Faltam leitos de retaguarda, faltam os exames, os medicamentos e a segurança para o trabalhador”, alega. Segundo ela, não se trata também de uma falta de profissionais.Isso é demonstrado, diz Marise, pela quantidade de pessoas contratadas e sem falta de médicos nas outras unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), como o próprio Hospital Estadual Materno-Infantil Dr. Jurandir do Nascimento (HMI), e nos ambulatórios da Prefeitura de Goiânia. Ela explica que o médico que realiza a especialização em pediatria, que dura 3 anos, pode atuar tanto na urgência como nos consultórios, mas que também existe a especialização da urgência pediátrica. Porém, ela não tem sido cobrada pelos contratantes.“A questão é de escolha profissional. Nos ambulatórios tem a estrutura que precisa, o médico passa os exames para fazer depois, em outro lugar, passa os medicamentos em que conseguem depois também. Mas na urgência precisa do exame naquela hora e não vai ter. O médico pensa muito sobre se submeter a isso”, diz. Outra razão para a restrição aos Cais é a insegurança dos profissionais até mesmo quanto a roubos, furtos e violência. “Houve essa concentração em Campinas também, que dificultou um pouco.”Marise também ressalta que há a questão trabalhista, em que o credenciamento no serviço ofertado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) não dá garantias de trabalho em longo prazo, já que o contrato tem prazo de apenas um ano. Além dos 52 pediatras nos ambulatórios municipais da capital e dos 19 que atuam na emergência do Cais Campinas, contratados pela SMS, também há especialistas na área nos quadros da Secretaria Estadual de Saúde (SES). “Atualmente, em exercício, a SES possui 103 médicos efetivos atuando como pediatras.Além desses, há 29 pediatras contratados distribuídos entre quatro hospitais geridos por Organizações Sociais: Materno Infantil, Hugol, Hurso e Maternidade Nossa Senhora de Lourdes”, informou a pasta em resposta ao POPULAR. Leitos conveniados reduzem por problema de pagamentoDe acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes), entre 2012 e 2019, Goiás perdeu 21% dos leitos pediátricos do Sistema Único de Saúde (SUS), saindo de 2.284 lugares de internação para 1.802. Os dados, no entanto, são questionados pelos trabalhadores da rede, que afirmam estarem desatualizados e que a contagem dos leitos é feita baseada nas normas de habilitação. No Hospital Estadual Materno-Infantil Dr. Jurandir do Nascimento (HMI), conforme mostrou o POPULAR na semana passada, o Cnes mostra uma perda de 30 leitos nos últimos 5 anos, mas a direção da unidade afirma que houve acréscimo, de 78 para 101 unidades, diferentemente do apontado pela base oficial.Assim mesmo, não se resolve o problema da falta de leitos para os usuários, em que, no próprio HMI há pacientes recebendo atendimento nos corredores e salas de espera por falta de local adequado. Na última quinta-feira, pelo menos 17 pessoas estavam nesta situação. A explicação também passa pela diminuição nos leitos conveniados, fazendo com que só sobre o HMI como unidade de atendimento de média e alta complexidade na capital. Seguindo a tabela apresentada pelo Cnes, os dez hospitais que representam as maiores quedas de leitos no Estado ofereciam juntos 298 vagas, mas hoje somam 78 leitos, uma redução de 74% nos últimos sete anos.Apesar da divergência quanto aos números, as unidades ouvidas pela reportagem confirmam que deixaram de receber pacientes da rede pública nos últimos anos. O Instituto Goiano de Pediatria (Igope), de Goiânia, por exemplo, teria deixado de habilitar 36 leitos desde 2012 para o SUS, de acordo com o Cnes. A explicação é o preço pago pelo serviço público para o tratamento e também a dificuldade para o recebimento. Já a Clínica Infantil Menino Jesus, de Ceres, a 180 quilômetros da capital, informa que neste período se transformou em unidade que atende várias especialidades e teve de distribuir seus leitos, mas que mantém todos à disposição do SUS e é um dos únicos hospitais da cidade a atender na pediatria.Segundo o diretor do Hospital Infantil de Campinas, Agnaldo Marques, até o ano passado haviam 14 leitos habilitados na unidade, mas de fato houve a redução para 7, diferente do que é apresentado pelo Cnes, em que teria se passado de 26 vagas para apenas 4. Ele ainda relata que o maior problema é financeiro, pois o SUS demoraria muito em fazer o repasse dos pagamentos e o valor não cobriria os gastos com o paciente. Há também casos de mudanças nos hospitais públicos. “O Hospital Estadual de Doenças Tropicais Dr. Anuar Auad (HDT), gerido pelo Instituto Sócrates Guanaes (ISG), informa que entre 2012 e 2019 não houve redução dos leitos de internação da unidade, mas uma readequação dos leitos de internação.” Segundo explica em nota, o hospital contava com 19 leitos de internação pediátrica em 2012, e não 23, que é a quantidade informada pelo Cnes, e passou a contar com 11 desde 2016, uma vez que 8 foram transformados em leitos de internação adulto. A unidade informa que há baixa procura por leitos pediátricos em razão do perfil de atendimento da unidade (doenças infectocontagiosas, dermatológicas, Meningite, Hepatite e acidentes por animais peçonhentos). (Vinícius Marques é estagiário do GJC em convênio com a Faculdade Araguaia)Capacidade além da estimadaA Secretaria Estadual de Saúde (SES) avalia que a capacidade do Hospital Estadual Materno-Infantil Dr. Jurandir do Nascimento (HMI) está acima do estimado pelo contrato firmado com a organização social que gere a unidade. “Somente em 2018 foi de 82.768, que excedeu consideravelmente o valor contratado, já que foi estabelecido como meta 78.378 consultas e atendimentos de urgência e emergência”, informou.Em relação à Taxa de Ocupação dos leitos de pediatria nas unidades estaduais, a SES avalia que o índice tem se mantido “extremamente elevado” no HMI e no Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol), acima de 90% tanto. De acordo com os dados mostrados, a clínica pediátrica do HMI tem taxa de 96% de ocupação. Na UTI pediátrica chega a 94,6%. Na tentativa de aumentar o número de leitos da rede, a SES informa que “estão previstos a abertura de dez leitos de UTI pediátrica e de 39 a 43 leitos de enfermaria pediátrica no Hugol”, com início no dia 12. Há também negociação com o município de Aparecida de Goiânia para abertura de mais dez leitos de UTI pediátrica e de 30 de enfermaria no hospital municipal da cidade. -Imagem (1.1770961)