A quantidade de novos certificados de registro de armas de fogo expedidos pelo Exército Brasileiro em Goiás aumentou 21 vezes entre 2012 e 2021. O número saltou de 1,2 mil para 25,6 mil. O crescimento de Goiás ficou acima do verificado no Brasil, que teve um aumento de oito vezes no mesmo período. Foram 33,3 mil novas emissões, em 2012, contra 279,8 mil, em 2021. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022. Especialistas afirmam que o crescimento do número de Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores (CACs) é uma tendência nacional e alertam para o fato de que ao em vez da prática esportiva, uma grande quantidade de pessoas usa o registro para circularem armada. A possibilidade de armamentos chegarem nas mãos de criminosos também preocupa. Até junho de 2022, já eram 46,3 mil pessoas com o certificado de registro de arma de fogo ativo na 11ª Região Militar, da qual Goiás faz parte junto com o Distrito Federal, Tocantins e o Triângulo Mineiro. “O crescimento foi ainda mais acentuado depois das mudanças legislativas promovidas pelos decretos assinados pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2019”, explica Isabel Figueiredo, membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).Além do aumento do número de munições e armas em acervo, uma das principais mudanças de 2019 para cá foi relacionada ao trânsito das armas de fogo. De acordo com o novo texto, todos os CACs poderão portar uma arma de fogo curta municiada, alimentada e carregada, pertencente ao acervo cadastrado no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) sempre que estiverem em deslocamento para treinamento ou participação em competições.Além disso, o texto não impõe limite de horário, nem delimita um trajeto pré-definido a ser cumprido pelos CACs entre o local do acervo pessoal e o clube de tiro. O gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, explica que com esta mudança, muitas pessoas passaram a interpretar os CACs como indivíduos com uma espécie de “porte de arma” e desenvolveram o interesse em obter o registro.“Muitas pessoas têm o registro de atirador desportivo, mas não praticam o esporte. Na prática, temos quase 700 mil pessoas andando armadas pelo Brasil.” Os especialistas apontam que este cenário pode resultar em um escalonamento da violência e de conflitos interpessoais que terminam em morte.“O instrumento usado em um episódio de violência faz toda a diferença. Com uma arma de fogo, o agressor tem a possibilidade de cometer um crime de forma distante, sem precisar fazer o uso da força e ainda pode utilizar uma quantidade de munição suficiente para matar mais de uma pessoa. Basta olhar para esses massacres que acontecem em escolas. A esmagadora maioria é feita com armas”, explica Langeani.Em julho deste ano, um homem, de 36 anos, que é CAC, se tornou suspeito de tentativa de homicídio contra uma travesti após dar carona para ela e sua amiga, em Nerópolis. De acordo com relatos, ele atirou várias vezes na direção dela, mas não a atingiu.Um mês antes, o jovem Felipe Gabriel Jardim Gonçalves, de 26 anos, que foi filmado enquanto atirava contra o ex-sogro, o policial aposentado João do Rosário Leão, de 63 anos, em uma farmácia, no Setor Bueno. João não sobreviveu aos disparos proferidos por Felipe Gabriel, que também tinha o registro de CAC na ocasião.Leia também:- Grupo armado se articula na política e lança candidatos - O que pensam os candidatos ao governo de Goiás sobre o uso de câmeras em uniformes de policiaisCriminososO FBSP destaca que nos moldes atuais, em que os CACs podem ter um amplo arsenal de armas, o registro pode ser usado por organizações criminosas para conseguir comprar armamentos e munições “legalmente”. Em julho deste ano, o Exército Brasileiro cancelou o CAC de um membro do Primeiro Comando da Capital (PCC), que conseguiu comprar um fuzil e outras armas após obter o registro, em São Paulo.O integrante da facção criminosa conseguiu o registro em junho de 2021, mesmo com 16 processos criminais na certidão de antecedentes, entre os quais homicídio qualificado e tráfico de drogas.“Os criminosos conseguem fazer falsificações de certidões criminais e das outras declarações necessárias. Assim, pedem o registro no nome deles. Nesse caso de São Paulo, o Exército sequer fez a averiguação on-line dos antecedentes do membro da facção. Mesmo com uma fiscalização mais rígida, as organizações criminosas também podem usar laranjas para tirar um certificado de registro e conseguir acesso facilitado às armas. Além disso, pode ocorrer a venda desses armamentos pelos CACs ou o roubo dos arsenais”, explica Isabel, membro do FBSP.Em julho, a Polícia Civil de Goiás iniciou a investigação de um homem que foi preso em flagrante por tráfico de drogas e posse ilegal de arma de fogo que usava o registro de CAC para portar um dos nove armamentos que mantinha em casa, em Trindade. Há a suspeita de que o preso tenha relação com uma facção criminosa.O gerente de projetos do Instituto Sou da Paz acredita que, caso Bolsonaro seja reeleito como presidente, uma ampliação das liberdades relacionadas às armas de fogo deve acontecer. “Devemos ter um aumento da circulação de armas de fogo e também um contínuo desmonte das ações fiscalizatórias”, afirma Langeani. “Caso outro candidato vença, é possível enrijecer alguns pontos como, por exemplo, a circulação de CACs com armas municiadas, alimentadas e carregadas.”Mesmo assim, Langeani acredita que o aumento do número de CACs e especialmente da quantidade de armas de fogo circulando pelo País, trará impactos para a Segurança Pública nacional durante anos. “Armas de fogo são bens muito duráveis e com pouca manutenção. Até hoje vemos armas das décadas de 1970 e 1980 sendo apreendidas. Sem dúvidas elas irão interferir nos índices de violência e, possivelmente, na escalada de alguns crimes.” Fiscalização é um ponto de fragilidade A fiscalização dos registros e das atividades desenvolvidas pelos Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores (CACs) é uma das preocupações que especialistas em Segurança Pública têm em relação ao crescimento da categoria. Na 11ª Região Militar, da qual Goiás faz parte, em 2020 e 2021, não houve verificação direcionada a detentores de certificados de registro expirados/inativos por conta da pandemia da Covid-19.A informação é do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). “A situação preocupa, pois caso haja alguma mudança, dificilmente haverá um recolhimento das armas que já estão nas mãos dos CAC’s. Por isso, a melhor estratégia é reforçar o controle. Entretanto, a atual capacidade instalada do Exército não é suficiente”, explica Isabel Figueiredo, membro do conselho do FBSP.Neste sentido, o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, ressalta que o aumento do número de CAC’s faz com que exista uma distorção da finalidade das atividades de fiscalização do Exército. “Os CAC’s acabam ganhando um protagonismo e vários esforços ficam voltados para eles. Enquanto isso, outras atividades de interesse público como, por exemplo, a fiscalização de fábricas de armas e armamentos, podem ficar prejudicadas.” Apesar de não ter existido uma verificação direcionada a detentores de certificados de registro expirados/inativos na 11ª Região Militar nos últimos dois anos, o número de visitas de fiscalização em clubes de tiro e a quantidade de armas e munições descartadas pelo Exército cresceu <FI10>(confira quadro na página ao lado).ApreensõesDados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 não apontam um aumento expressivo de apreensões de armas em Goiás. Exceto pela Polícia Federal, todas as outras forças de segurança apresentaram decréscimo ou estabilidade no indicador. No estado, a quantidade de novos registros de posse e porte ilegais de arma também caiu.Entretanto, Langeani esclarece que existe uma dificuldade de fiscalização dos CAC’s por forças de segurança como, por exemplo, a Polícia Militar, Polícia Civil e a Polícia Rodoviária Federal (PRF). “Para o profissional que faz a abordagem na rua é complicado. Eles têm dificuldade de averiguar se os documentos dos CAC’s estão regulares porque o sistema do Exército não é público, nem de fácil acesso para outras forças policiais. Além disso, paira o medo de caírem na Lei do Abuso de Autoridade.”A reportagem questionou o Exército Brasileiro sobre quais são as atividades de fiscalização relacionadas aos CAC’s que são desenvolvidas pela instituição na 11ª Região Militar, mas até o fechamento desta reportagem não obteve nenhuma resposta. Usuários defendem prática esportiva “O tiro esportivo é um esporte como qualquer outro. Por conta de algumas pessoas que não levam a atividade com o rigor necessário, todos os praticantes devem ser tolhidos?”, questionou o proprietário de um clube de tiro na Vila Aurora Oeste, Leder Pinheiro, quando perguntando sobre o aumento do número de Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores (CACs) e a relação com uma possível escalada de episódios de violência.Leder considera que as mudanças promovidas pelos decretos assinados pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2019, foram positivas para os CAC’s. “O texto dá mais liberdade para o praticante. Não é preciso, por exemplo, fazer um roteiro engessado. As pessoas podem colocar a arma no carro, ir trabalhar e depois ir para o clube de tiro treinar, assim como acontece com qualquer outra prática esportiva”, afirma.Ele aponta ainda que o processo de fiscalização ao qual os clubes são submetidos é bastante rígido. “O Exército me fez uma visita recentemente e eu tive que cumprir uma lista de mais de 20 itens. Eles são exigentes com o nosso funcionamento. Para conseguir o registro como CAC também não é simples. Os profissionais credenciados na Polícia Federal como, por exemplo, os psicólogos, são sempre fiscalizados.”O empresário e contador Weber Melo, de 37 anos, pratica tiro esportivo há quase seis anos. Ele é caçador e atirador e frequenta um clube de tiro de uma a duas vezes por semana, além de participar de competições. Assim como Leder, ele considera que as mudanças legislativas foram positivas. No caso do trânsito entre o local do acervo até o clube de tiro, ele destaca que a sensação de proteção cresceu desde que ele passou a poder andar com uma arma municiada, carregada e alimentada. “Por transitarmos com armamentos, podemos ser vítimas de assaltos ou furtos.”Weber também já passou por fiscalizações do Exército. “Estava em dia com todas as minhas obrigações legais. Todo atirador que entra neste universo do tiro esportivo é constantemente alertado sobre as boas práticas pelos clubes que frequentam em cursos e palestras”, afirma.O contador considera que as pessoas que podem usar o registro como CAC para finalidades que não estão ligadas com a prática esportiva são uma minoria. “Elas não representam a grande maioria que segue a legislação pontualmente e todos os pré-requisitos exigidos”, diz. Leia também: O que pensam os candidatos ao governo de Goiás sobre o uso de câmeras em uniformes de policiaisGrupo armado se articula na política e lança candidatos