Os aparatos existentes na legislação brasileira para regular a contratação de shows e espetáculos por parte do poder público permitem que as prefeituras tenham muita liberdade para contratação de artistas. Desde que se respeitem as verbas vinculadas constitucionalmente a áreas como saúde e educação, os gestores dos cofres municipais podem usar os recursos que sobram para contratar praticamente quem quiserem.O limitador de valores para essas contratações é a necessidade de comprovar que outras prefeituras pagaram mais ou menos o mesmo. Além da promoção do direito ao lazer e cultura, a contratação dessas apresentações artísticas funciona como uma forma de as autoridades obterem prestígio político junto à população, especialmente em cidades com menos habitantes. Órgãos fiscalizadores investigam a possibilidade de ganhos financeiros por parte de autoridades.As atenções da sociedade se voltaram nas últimas semanas para shows bancados pelas prefeituras sem licitação nem qualquer mecanismo desde que o cantor Zé Neto, da dupla com Cristiano, provocou a cantora Anitta e atacou artistas que receberam recursos por meio da Lei Rouanet, em um show no dia 13 de maio, em Sorriso (MT), pago com recursos públicos municipais.A partir de então, apresentações milionárias bancadas com recursos públicos passaram a ser questionadas e algumas, como as do cantor Gusttavo Lima, entre R$ 800 mil e R$ 1,2 milhão, se tornaram alvo de ações do Ministério Público. Em Goiás, na semana passada, um promotor de Justiça entrou com ação na Justiça questionando os gastos de R$ 1,15 milhão em shows em Cachoeira Alta, uma cidade no Sul do Estado com 12,8 mil habitantes.Apesar de até já se falar em “CPI dos Sertanejos” por causa da exposição dos valores gastos pelas prefeituras com shows, os próprios órgãos externos de fiscalização das gestões públicas admitem que há muita margem de manobra para os prefeitos quando se trata de contratar um artista.“Cabe ao prefeito e aos vereadores decidirem sobre quais são as políticas públicas de determinada cidade, mesmo que o gasto seja milionário. Essa prerrogativa é deles. Não existe nenhum empecilho legal, exceto nos casos de verbas que são previamente vinculadas a outras áreas”, diz Juscimar Ribeiro, especialista em direito administrativo e constitucional e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Goiás (OAB-GO).Para contratar um artista ou grupo artístico via inexigibilidade de licitação são necessárias apenas duas medidas: que a atração seja consagrada pela crítica especializada ou opinião pública, sempre levando em conta o contexto regional, e que se apresente pelo menos três notas fiscais comprovando que foi cobrado valor similar de outras prefeituras.“No caso de Goiás, normalmente as duplas sertanejas são as atrações preferidas”, diz Marco Aurélio Sousa, auditor de controle externo na Secretaria de Licitações e Contratos do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás (TCM-GO). “É importante lembrar que não existe uma reserva de orçamento para esses gastos (com shows e atrações). O que avaliamos é se não é uma verba vinculada a outras áreas e se não houve nenhum superfaturamento.”Ribeiro destaca o fato de que a Constituição resguarda o acesso à cultura e ao lazer como direito fundamentais. Baseado nisso, de acordo com ele, essas contratações via inexigibilidade de licitação são feitas amparadas na discricionariedade da administração pública. Dessa forma, o gestor tem liberdade para decidir sobre quem, quando e quanto será gasto nesse tipo de evento. “Respeitando os parâmetros, eles podem contratar da maneira que acharem melhor. Os possíveis questionamentos devem ser se o formato do contrato está seguindo as baliza legais e se o valor que está sendo cobrado está correto.”A promotora de Justiça Fabiana Zamalloa, coordenadora da área de atuação do patrimônio público e terceiro setor do Centro de Apoio Operacional do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), alerta que a forma como um show é contratado pelo poder público atualmente abre brechas para desvios de recursos e gastos injustificáveis. “Sabemos que existem várias situações que podem levar a um sobrepreço no valor da atração artística. Muitas vezes os atores envolvidos podem utilizar desses mecanismos para embolsar recursos públicos. Os nossos esforços são sempre para tentar evitar que eles (os recursos) se percam.”Leia também:-Ministério Público pede fim de gastos indevidos com shows em Cachoeira Alta -Leonardo se posiciona sobre o uso de verba pública em shows: “Se tirar da saúde, não canto” -MP-GO apura gastos de R$ 1,15 milhão em shows para Cachoeira Alta AtravessadoresPrefeitos ouvidos pelo POPULAR afirmam que existe um assédio por parte dos empresários dos artistas nas épocas mais tradicionais, como aniversários da cidade, festas juninas e feiras anuais, e que geralmente a prefeitura apresenta um valor máximo a ser gasto e o empresário uma lista com opções de cantores ou bandas sob sua responsabilidade. Segundo eles, os valores negociados apresentam muitas variáveis, como a data do show, a agenda do artista e a localização da cidade.Os gestores municipais entrevistados também falam da existência de atravessadores – pessoas que fazem a ponte entre o empresário do artista e a prefeitura -, o que encarece o show na cidade. Alguns relataram ainda que já receberam propostas de atravessadores relacionadas a emendas parlamentares: uma emenda só seria liberada para o município caso aquele dinheiro fosse gasto com a contratação de um show daquele atravessador.O TCM-GO veda a participação desse personagem na negociação.“O que acontece muito é que normalmente o artista tem um empresário que vende a data de um show para um outro empresário local, que pode tentar negociar esse show com o poder público. Isso acaba tornando o evento mais oneroso, pois tem um intermediário que também precisa lucrar. Esse tipo de ação é vedada”, explica o auditor de controle externo do TCM-GO. (Colaborou Márcio Leijoto)