Imagine que toda a sua família tenha coronavírus, menos a sua filha de 7 anos, que não apresenta nenhuma manifestação. No entanto, após todos se recuperarem, ela começa a ter febre alta persistente e dores fortes na barriga. Ao ir ao hospital, os médicos acham que é uma apendicite, mas o diagnóstico é descartado. Nos dias seguintes, a criança começa a apresentar inchaço e manchas vermelhas no corpo.Esse foi o drama da cozinheira Adriana Aparecida Pereira, de 35 anos. A filha dela, a pequena Mariana Aparecida Pereira Costa, de 7 anos, foi uma das 14 crianças em Goiás que tiveram a Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), doença nova, relacionada à Covid-19. Mariana ficou 15 dias internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), do tipo pediátrico, do Hospital de Urgências da Região Noroeste (Hugol), em Goiânia. “Foi muito triste. A gente achou que ia perdê-la”, relata Adriana.Apenas 0,06% dos registros de coronavírus em menores de 15 anos apresentaram a síndrome em Goiás. Apesar da pouca incidência, 13 dos 14 casos confirmados precisaram de um leito de UTI. Seis casos suspeitos de SIM-P são investigados. Em todo o país já foram confirmados 319 casos e 23 óbitos.Adriana vive com o marido e dois filhos em Nerópolis, Região Metropolitana de Goiânia (RMG). Assim como milhares de goianos, ela se infectou com o coronavírus em junho, momento em que começava a aumentar o número de mortos e casos positivos no Estado. “Só o meu pai que ficou internado oito dias em observação por ser mais idoso e ter enfisema pulmonar. O resto foi bem mais tranquilo, dores de cabeça e dores no corpo”, lembra a cozinheira.Enquanto a família estava doente, Mariana não apresentou nenhum sintoma e não chegou a fazer o teste de Covid-19. Pouco mais de uma semana depois que a família se recuperou, já no mês de julho, a criança começou a ter febre e reclamar de dores abdominais. No terceiro dia, a mãe procurou ajuda médica em um posto de saúde.“Na primeira consulta ela foi diagnosticada com inflamação de garganta. Na segunda, falaram que era alguma virose, mas que poderia ser Covid. Na terceira, deu apendicite”, resume Adriana, sobre o zigue-zague nas unidades de saúde de Nerópolis. Após aparecerem manchas vermelhas nas costas, palmas da mão e pés, Mariana foi encaminhada para o Hospital Materno Infantil (HMI), na capital, de onde foi direto para a UTI do Hugol. “Ela estava inchando, deu infecção generalizada, água no pulmão. A língua ficou tipo um morango, áspera”, lembra a cozinheira.As complicações de saúde relacionadas à SIM-P mais comuns em Goiás foram pressão baixa, com sete casos, e insuficiência renal aguda. Também houve casos de infecção generalizada, pneumonia e acúmulo de líquido no pulmão (veja quadro).Além dos cuidados da UTI e tratamento das complicações, Mariana tomou imunoglobulina, um composto de anticorpos que ajuda a controlar a inflamação nos órgãos. A partir do décimo dia de internação, ela já apresentou melhoras, narra Adriana. “A recuperação foi lenta. Ela ficou muito tempo sem andar, então teve que reaprender a andar, tinha que segurá-la. E ela também ficou muito ansiosa, eram muitas medicações. Hoje ela está bem, não ficou nenhuma sequela”, diz a mãe.Os sintomas da SIM-P têm semelhanças com a síndrome da Kawasaki, muito rara e cujo tratamento é com imunoglobulina. No entanto, ela tem adicionais como a diarreia e o aumento de indicadores inflamatórios. No início da pandemia, países Europeus perceberam o aumento dessa síndrome rara logo após a primeira onda de Covid-19 em adultos. Ainda não se comprovou a relação direta com o coronavírus e nem os fatores que tornam uma criança vulnerável e outra não. O Ministério da Saúde a define como “doença emergente potencialmente associada à Covid-19”.Adriana alerta que os pais devem ficar de olho nos filhos e evitar a contaminação de covid-19 mesmo entre os mais jovens. “Não é brincadeira”, resume. Notificação é complexaO diagnóstico da SIM-P, doença relacionada à Covid-19, é complexo e não existe um único exame específico. A Secretaria de Vigilância do Ministério da Saúde aponta que o paciente deve ter pelo menos dois órgãos afetados, marcadores de inflamação elevados e evidências de que teve coronavírus. Também devem ser descartadas outras causas de origem infecciosa de inflamação óbvias. Como a SIM-P é muito semelhante ao Kawasaki, casos de diagnóstico desse tipo em que o paciente teve Covid-19 também devem ser notificados como a nova síndrome. A enfermeira epidemiologista Mary Alexandra da Costa, analista em saúde responsável técnica da SIM-P da Secretaria de Estado de Saúde em Goiás (SES-GO), conta que tem sido feita busca ativa nos hospitais para investigar casos da nova síndrome. “Em Goiás está mais brando. Outros Estados já tiveram muitos desses casos identificados”, avalia.O pediatra do Hospital Santa Maria Karoly Hunkar defende a necessidade da família fazer teste de Covid-19 mesmo nas crianças, para facilitar o acompanhamento e para que o diagnóstico seja facilitado. SES-GO faz busca por casosA auxiliar de corte Débora da Silva, de 38 anos, demorou para descobrir que a febre e as manchinhas vermelhas na pele do filho Mateus da Silva, de 4 anos, eram sinais do pós-Covid. O primeiro médico achou que era alergia e indicou uma pomada. Mas a situação da criança não melhorava. “Estava parecendo sarna no corpinho dele”, relata. Mateus chegou a ser internado por quatro dias no Hospital Santa Maria, em Goiânia, mas não teve agravamento e melhorou após o tratamento com imunoglobulina. O caso foi diagnosticado como síndrome de Kawasaki em decorrência do coronavírus. O pediatra Karoly Hunkar explica que não considerou a nova síndrome porque não houve sintomas como diarreia e aumento de indicadores inflamatórios. “Se tivesse atrasado um dia, talvez teria entrado nos critérios de SIM-P”, avalia. O Ministério da Saúde inclui como SIM-P os casos de Kawasaki associado à Covid. A inclusão do caso como SIM-P deve ser avaliada em busca ativa da SES-GO. Diagnóstico precoce é importantePara evitar o agravamento da SIM-P, como ocorreu no caso da garota Mariana Aparecida, de Nerópolis, o diagnóstico precoce é fundamental. É o que explica a médica intensivista pediátrica da UTI crítica respiratória pediátrica do Hugol, Fernanda Peixoto, que também é professora do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Goiás (UFG). Fernanda explica que são comuns casos de crianças que já chegam ao Hugol bastante inchadas, sem urinar e prostradas, depois de terem percorrido outras unidades de saúde sem o diagnóstico correto. “Muitas crianças, antes de chegar até a gente, foram ao cirurgião achando que era apendicite. Fica rodando de médico em médico. Aí é quando fica grave mesmo”, descreve. Por isso, Fernanda explica que os pais e responsáveis devem ficar atentos aos primeiros sintomas que a criança e o adolescente apresentam. Ela cita como principais, a febre de mais de 38 °C em mais de 24 horas e a dor abdominal forte. “A criança não consegue brincar”, exemplifica. Além disso, Fernanda pontua que é necessário realizar o teste do tipo RT-PCR quando a criança teve contato com pessoas positivas para o vírus. “As pessoas ficam com dó da criança, mas quando a família sabe que teve Covid, é mais fácil fazer o diagnóstico.”A médica do Hugol conta que observa que as UTIs pediátricas ficaram mais cheias, com a chegada de pacientes com SIM-P, um período após o pico de casos da Covid-19 entre adultos. Por isso, ela avalia que pode haver um aumento de internações pediátricas entre o fim de janeiro e fevereiro, caso se confirme a previsão de crescimento de internações em leitos adultos nas próximas semanas. “É importante entender que não tem incidência elevada, mas é mais incidente do que a gente pensa. Não tem relação com comorbidade, pode acontecer com qualquer criança”, afirma Fernanda. O primeiro tratamento da SIM-P, logo que o paciente chega e aguarda o resultado de exames, é feito com o suporte em oxigênio, remédios para ajudar a controlar o coração e outros cuidados necessários para internações graves, segundo Fernanda. Ela explica que assim que o diagnóstico da nova síndrome é confirmado, é feito o uso da imunoglobulina e de corticoides, para diminuir as inflamações. No entanto, quando o paciente recebe alta ainda continua a usar medicações, como corticoides e aspirina, já que ele ainda continua com alguma inflamação. “Essa aspirina é para prevenir uma das piores complicações que a criança pode ter, que chama aneurisma de coronária, que é quando as coronárias dela dilatam. Isso pode ser perigoso para a criança e às vezes não aparece logo na internação. Pode aparecer quatro, seis semanas depois.” PandemiaDados da SES mostram que na segunda semana de dezembro houve aumento de 3 pontos porcentuais na proporção de casos confirmados de Covid-19 de menores de 19 anos. A proporção chegou a 13,4% do total de positivos da semana, maior desde o início da pandemia. A SIM-P costuma ocorrer em crianças mais velhas e adolescentes. A enfermeira epidemiologista Mary Alexandra da Costa, analista em saúde responsável técnica da SIM-P da SES-GO, diz que este aumento de crianças e adolescentes com coronavírus pode fazer crescer os casos de SIM-P. No entanto, ela avalia que mesmo sem incremento de infectados jovens, haveria um crescimento de notificação da nova síndrome, já que os profissionais estariam ficando mais capacitados para identificar os casos.Mary lembra que é preciso ter um cuidado com crianças e adolescentes em relação à Covid, embora não costumem apresentar complicação ao pegar o vírus. “A partir do momento que a criança não tem covid, ela não vai ter SIM-P”. Mary reforça que deve-se ter cuidado redobrado com a higienização das mãos, evitar que outras pessoas peguem a criança no colo, não levá-la a locais com aglomeração. -Imagem (1.2168871)