O primeiro dia de audiência de instrução e julgamento dos quatro policiais militares acusados de matar os irmãos Victor de Paula Araújo, de 21 anos, e Kalebe, de 19, após terem sido rendidos na residência deles, em Trindade, foi concluído com apenas metade das testemunhas de acusação previstas para o dia tendo comparecido para depor. As oitivas ocorreram mais de dois anos após o crime. A Justiça deu cinco dias para que o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) se pronunciar a respeito das ausências. Com base no que foi apurado pela Polícia Civil, o MP-GO denunciou os cabos Ricardo da Costa Faria Júnior, de 34 anos, e Leonardo de Oliveira Cerqueira, de 29, e os soldados Carlos Pinheiro Lopes, de 33, e Jefferson da Silva Gomes, de 29, por homicídio qualificado e fraude processual. Os policiais pertencem ao Batalhão de Operações Especiais (Bope) de Goiânia.Por volta de 11 horas do dia 10 de janeiro de 2020, eles teriam entrado na casa em que os irmãos moravam com o pai, localizada no Setor Maysa II, rendido e matado as vítimas. Victor morreu com três tiros e Kalebe, com dois. O caso ganhou repercussão e causou forte comoção depois que o pai dos dois, o motorista Eligar Silva Araújo, de 47 anos, conversou com jornalistas dizendo que os filhos foram executados, que Kalebe era um jovem focado nos estudos e que Victor, mesmo tendo passagem pela polícia, não estava envolvido com crimes e tinha inclusive medo de sair de casa. Victor ficou preso por cerca de três anos e estava solto desde dezembro de 2019, com tornozeleira eletrônica. Pela complexidade do caso, a Justiça havia dividido a audiência em três partes, sendo a primeira no dia 23 de março, a segunda no dia 30 e a última no dia 6 de abril. Ao todo foram arroladas pelo MP-GO 26 testemunhas, sendo 13 sigilosas, inclusive policiais e bombeiros envolvidos diretamente ou não na ocorrência. Anteriormente a audiência chegou a ser marcada para 8 de abril de 2021, mas foi adiada por causa da pandemia de Covid-19 e a suspensão de atividades presenciais no Judiciário.Destas testemunhas que não tiveram o nome revelado por questão de segurança estão quem diz ter visto os policiais chegando na residência antes dos primeiros tiros, ou ter ouvido duas sequências de tiros, num intervalo de dez minutos, sendo que na segunda sequência foi ligada a sirene da viatura ou ainda então que viu quando os policiais, após os tiros, foram até a viatura e pegaram pacotes que foram deixados no interior da casa.Um dos ausentes afirmou à Justiça que é idoso, não conseguiria ir até o fórum em Trindade para a audiência presencial e não tem conhecimento para entrar nela virtualmente, nem conhece pessoas que pudessem auxiliar. Em outro caso, a testemunha chegou a ser notificada, mas não informou o motivo para não comparecer. Ainda na audiência, o MP-GO insistiu na oitiva dos que não estiveram presentes.O promotor substituto Augusto Henrique Moreno Alves, da 6ª promotoria de Trindade, acompanhou a audiência. Segundo o promotor, as oitivas realizadas foram dentro do que se previa, com as testemunhas confirmando as suspeitas, mas que vai insistir em encontrar as outras que não apareceram porque o relato delas é muito importante. Segundo ele, o MP-GO tem até a última audiência para localizá-las.InvestigaçãoNa versão dos policiais militares, eles atenderam a uma denúncia de que no local Victor estaria vendendo drogas e, ao chegarem à residência, encontraram um deles na porta entrando ao avistar a viatura. Quando eles foram atrás e entraram na casa, teriam sido recebidos a tiros pelos suspeitos e reagiram. Nenhum policial ficou ferido. Eles alegam terem encontrado três revólveres na casa, além de drogas, e que as vítimas estavam vivas quando socorridas.Com base em oitivas e perícias, a Polícia Civil concluiu que os acusados ficaram cerca de meia hora na casa antes dos primeiros tiros, sendo que para fazer a varredura no imóvel como os policiais disseram ter feito demoraria menos de três minutos. Testemunhas também dizem ter ouvido os policiais mandando os irmãos sentarem, deitarem e calarem a boca, além de Victor pedindo para o irmão não ser morto.Os policiais teriam esperado 20 minutos antes de chamar o socorro. Quando a ambulância chegou, o médico disse que foi intimidado a levar os irmãos para uma unidade de saúde mesmo desconfiando que já estavam mortos. A casa teria sido toda revirada pelos policiais que chegaram ao local para apoio após os disparos.O inquérito concluiu que o material supostamente encontrado na casa foi plantado. As armas, por exemplo, não tinham a impressão digital de nenhum dos irmãos. “Eles agiram de forma insidiosa e abrupta, pois, em que pese os antecedentes criminais, tanto a vítima Victor (que usa tornozeleira), quanto mais a vítima Kalebe (que não tinha nenhum envolvimento com a criminalidade), não esperavam abordagem por agentes estatais naquelas circunstâncias (dentro de sua própria casa) e ataque tão letal (disparos de carabina/fuzil no tórax)”, concluiu o MP-GO em sua denúncia.A Justiça também analisa o pedido do MP-GO para que o Tribunal do Júri julgue apenas o crime de homicídio e que os outros sejam remetidos à Auditoria Militar, que teria a competência para isso. Na audiência do dia 23 foi dado um prazo de cinco dias para a defesa dos policiais se manifestar sobre este pedido.Essa fase de audiências é considerada a primeira do julgamento, na qual a Justiça analisa os depoimentos das testemunhas arroladas e decide pelo pronunciamento ou não dos réus (se há ou não provas suficientes para o júri analisar) ou então pela desclassificação (quando a Justiça entende que o crime é outro e não deve passar pelo júri) ou ainda pela absolvição sumária, hipótese mais incomum nesta etapa do processo.Apesar da possibilidade de audiências virtuais, o promotor esclarece que vai insistir nas presenciais por questão de segurança das testemunhas sigilosas. Ele disse que o conteúdo do que foi falado na que ocorreu no dia 23 não pode ser comentada publicamente neste momento. Os policiais respondem ao processo em liberdade. A reportagem tentou, sem sucesso, contatar o advogado deles.