Mais de um terço das mortes em ocorrências registradas como confronto contra a Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO) nos meses de janeiro e fevereiro deste ano ocorreu dentro de casa, conforme levantamento feito pelo POPULAR. No total, 32 pessoas foram mortas em ações de intervenção da força de segurança em residências neste período. Quase metade destas ocorrências em casas foi fruto de denúncias anônimas.Um dos casos, divulgado como confronto, foi o que resultou na morte do estudante Kayque Denúbio Correia Mendanha, de 15 anos. Ele foi morto no dia 2 de fevereiro dentro de casa enquanto se preparava para ir trabalhar no pitdog do pai. Também foi morto o autônomo Guilherme Junio Ferreira Evangelista, de 27 anos, vizinho da família. Dois policiais chegaram a ser presos, mas a prisão foi revogada dias depois.Nos primeiros dois meses deste ano, foram registradas 72 ocorrências de confrontos com 92 mortos - número que já é 39% maior que o registrado no mesmo período de 2017. Em média, significa que uma pessoa foi morta pela PM a cada 15 horas. O ano passado foi o com maior letalidade policial, observando os dados disponíveis desde 2011. Comparando com 2017, em 2018 houve um aumento de mais de 50%, com 424 pessoas mortas. A reportagem conseguiu identificar os espaços onde se deram 180 das 288 ações envolvendo a PM. Das identificadas, 40% foram dentro de casa.Socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), Giane Silvestre afirma que o fato de as ocorrências serem em casa chama atenção. “As mortes provocadas por policiais são justificadas por decorrerem de confronto. Que tipo de confronto é esse que está ocorrendo na residência das pessoas? É um pouco estranho. Sinaliza muito mais que está havendo algum tipo de abordagem abusiva, que as mortes estejam ocorrendo por uso desproporcional da força”, disse.Advogado e professor da Faculdade de Direito da USP, Alamiro Velludo explica que a Constituição Federal estabelece que a casa de uma pessoa é um local inviolável, podendo haver um rompimento em duas hipóteses: ordem judicial, que só pode ser cumprida durante o dia, ou flagrante. “Desde que haja indícios veementes de que há a prática de um delito no local, e não uma mera suspeita ou denúncia anônima”, pontuou.O tráfico de droga, pensando no ato de guardar droga em casa para fins de comercialização, é considerado um crime permanente, havendo sempre a ideia de possível flagrância. O professor explica que, desta forma, há a possibilidade de a polícia entrar forçadamente na residência, mas frisa: “precisa ser algo que derive de uma suspeita bastante razoável. Eu não posso, sob o pretexto de encontrar droga, fazer varreduras na casa das pessoas aleatoriamente.” Conforme advogado, é preciso haver investigação anterior, ou uma informação muito precisa.De 26 ocorrências em casa nos primeiros dois meses deste ano, 12 foram fruto de denúncias anônimas. Velludo pontua que não há na legislação algo que especifique o que fazer em casos do tipo. Segundo ele, à princípio, algo anônimo seria algo sem legalidade. No entanto, é preciso levar em consideração que há contatos anônimos que produzem informações relevantes. “O grande dilema é que (a ação) acaba se legitimando posteriormente, após encontrar a droga”, afirmou. Para ele, a polícia precisa deixar bem documentado qual foi o tipo de denúncia e o que exatamente foi dito pelo denunciante, tanto para amparar a prática policial, quanto para haver transparência e evitar abusos.Para o coordenador do Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dijaci David de Oliveira, o fato de a maior parte dos confrontos serem em casa mostra que a política de segurança é feita de forma casual, improvisada. “Estava em um lugar, de repente recebo uma denúncia anônima e invado uma casa porque me disseram que ali tem um suspeito? É assim que se produz a segurança?”, questiona.Um caso observado pela reportagem foi o do pintor Lucas Sousa Alves, de 28 anos. Ele foi morto dentro de casa, no Residencial Santa Fé, quando havia acabado de retornar da casa da sogra, onde deixou a esposa. A ação, realizada pelo Grupo de Radiopatrulha Aérea da PM (Graer), foi à tarde. A polícia afirma que recebeu denúncia anônima de que ali se encontrava um homem integrante de uma facção criminosa. Ao ir ao local, disseram ter olhado por debaixo do portão e visto Lucas com uma arma. Ao entrarem, a polícia afirma ter sido recebida a tiros, e por isso atingiram Lucas, que morreu no local. Eles alegam ter achado maconha.A reportagem apurou que os militares recolheram os objetos e não quiseram entregar à Polícia Civil (PC) no local, tendo preferido entregá-los na Central de Flagrantes. A Secretaria de Segurança Pública (SSP) foi questionada quanto às provas de envolvimento de Lucas com facção criminosa, mas não houve resposta. A pasta disse apenas que todas as ocorrências passam por investigação rigorosa. Lucas vivia com a esposa e duas filhas, de 10 e 3 anos. Eles moravam na casa há seis anos. Apesar de não se enquadrar nas nos casos ocorridos em casa, assim como a morte de Kayque, a ação que vitimou Jefferson Alves Martins, de 25 anos, é lembrada pelo secretário da SSP Rodney Miranda, que o caracterizou como sendo “sob suspeita”. O jovem foi morto em fevereiro, em Aragarças. Policiais relataram terem sido recebidos a tiros no momento da abordagem. A vítima, porém, enviou gravações por WhatsApp para a mãe e a namorada, sem que os policiais percebessem, dizendo que havia sido preso, mas que esperava ser liberado logo. Dois policiais foram presos suspeitos de terem matado o jovem. -Imagem (Image_1.1780738)