Junto de um soco no rosto que rompeu o supercílio, Nathalia Alves escutou, dos próprios agressores, que estava apanhando por ter voz grossa e “parecer sapatão”. Assim como ela, pelo menos 368 pessoas em Goiás sofreram lesões corporais em razão de preconceito com sexualidade ou identidade de gênero durante 2021. O registro, que representou uma alta de 161% em relação ao ano anterior, revela um cenário ainda hostil contra pessoas LGBTs, conforme avaliam representantes e autoridades.Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum de Segurança Pública, mostram que Goiás registrou crescimento entre todos os tipos de crimes cometidos por homofobia ou transfobia. A violência contra pessoas LGBTs é diferenciada das demais quando se constata que a vítima sofreu a agressão por ser gay, lésbica, bissexual ou transexual. Para verificar esta distinção, são avaliadas questões como o contexto da agressão.No dia que foi agredida, Nathalia, estudante de 24 anos, estava a caminho do estágio. Enquanto caminhava pelas ruas do Setor Central, em Goiânia, dois homens a pararam e pediram informação sobre um endereço. “Eles seguiram, mas um deles voltou. Ele me puxou pelo ombro e me deu um murro na cara. Na mesma hora ele falou que eu tinha levado o soco pela voz grossa e por ter cara de sapatão. E que era para eu agradecer por não ter acontecido nada pior”, relembra.Relatos como o de Nathalia são rotineiramente registrados pelo Grupo Especializado no Atendimento às Vítimas de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Geacri), criado em agosto de 2021 na capital. De acordo com o delegado Joaquim Adorno, titular do Geacri, o crescimento dos casos de intolerância foi percebido. Em média, a delegacia registra dez inquéritos de violência por homofobia ou transfobia por mês.O Anuário mostra que além do aumento de lesão corporal, que ficou em 161%, houve variação ainda mais preocupante dos assassinatos, saindo de quatro registrados em 2020 para 19 em 2021, alta de 375% (veja quadro ao lado). Já os casos de estupros saltaram de dez, em 2020, para 27, em 2021, representando um aumento de 170%.Em maio deste ano, Lucas (nome fictício), de 27 anos, viveu o que define como um dos piores momentos da vida. Ao defender a irmã, que estava sendo agredida pelo namorado, sofreu uma série de agressões do cunhado. “Disse que eu era um viadinho, que eu não era o homem da casa e sim a putinha da casa e que quem mandava na casa era ele. Quando comecei a gravar ele veio para cima de mim com socos, chutes e muita porrada no meu rosto”, relembra.No mesmo dia da agressão, Lucas tinha feito uma cirurgia odontológica. “Ele dizia que viado deveria morrer, que não deveria existir e que ninguém iria sair da casa vivo, que mataria todo mundo”, conta o jovem sobre o que ouviu antes de conseguir se soltar do cunhado e pedir ajuda. Mesmo conseguindo sair de casa e levando a irmã e o sobrinho, as agressões se seguiram.“Fomos para a casa da vizinha e ficamos lá até a polícia chegar. No prazo entre a polícia chegar ele colocou fogo na casa queimando todas as minhas coisas”, detalha. O cunhado foi preso em flagrante, mas foi solto no dia seguinte e segue em liberdade. “Deixei bem claro na minha denúncia que ele tentou me matar e disse que iria terminar o que começou caso fosse solto”, lamenta Lucas.Em casaApesar de cruzar com olhares reprovadores e muitas vezes ser chamada de “traveco” nas ruas, o espaço onde Sabrina Gomes, de 23 anos, mais sofreu violência foi dentro da família. “Minha mãe e irmãs sempre me entenderam. Porém, tinha uma pessoa que não me aceitava enquanto mulher trans. Chegou a me bater e raspar o meu cabelo quando ele estava crescendo. Tive de sair de casa com 15 anos para deixar de conviver com ele”, conta a cabeleireira que mora em Goiânia, mas nasceu em Montividiu do Norte.Sabrina retificou o nome dela em 2019. Depois, ela passou por uma cirurgia de redesignação sexual. “Apesar de nunca ter sido violento comigo, meu pai não me chamava de Sabrina e usava os pronomes masculinos. Depois dessas mudanças, a atitude dele é outra. Diz que sou uma boa filha, que cuida e se importa com ele. Eu fico feliz. É uma conquista. Ainda tenho muitos sonhos. Quero fazer faculdade, trabalhar de carteira assinada, comprar uma casa e dar uma condição de vida melhor para a minha mãe.”A cabeleireira acredita que a melhor forma de combater a violência contra a população transexual é inserindo estas pessoas nos mais diversos ambientes. “Precisamos estar em locais como a escola e o ambiente de trabalho formal. Mais do que isso, precisamos estar nesses locais e sermos respeitadas. Termos nosso nome social respeitado. A gente não escolhe ser assim, a gente se descobre.”Sistema de registros ainda tem falhasO delegado Joaquim Adorno, titular do Geacri, diz que uma das possibilidades para explicar o aumento está na facilidade para apresentação de denúncias. “Esses crimes já existiam, mas as pessoas não se sentiam motivadas a denunciar por conta do próprio sistema. Por viverem em uma sociedade intolerante, as vítimas não acreditavam que teriam algum resultado”, considera Adorno, que afirma ter havido melhora das notificações após a criação do Geacri.A advogada Amanda Souto, vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), concorda que o fenômeno pode estar ligado à melhoria do sistema de notificações. Destaca, no entanto, que a relação é incerta. Amanda acompanha os números de Goiás há alguns anos e já apontou a possibilidade de subnotificação.Conforme explica a representante da OAB, Goiás está entre os estados que têm sistema preparado para diferenciar os crimes cometidos em razão de sexualidade ou identidade de gênero. No entanto, por divergências entre os números oficiais e levantamentos de entidades, há a suspeita de que as informações não são consolidadas de forma adequada.“Em 2020 enviei um ofício para a Secretaria de Segurança Pública questionando a possibilidade de subnotificação e eles disseram que as ferramentas existem, mas de fato são subutilizadas”, conta Amanda Souto. Dessa forma, a advogada levanta a hipótese de ter havido melhoria no preparo dos agentes. “Temos os fatores sociais, mas pode acontecer também a melhora na coleta de dados”, ressalta.No entanto, a advogada diz que caso não tenha tido melhora na preparação dos agentes, com algum curso ou orientação específica, o cenário real da violência estará muito mais grave. “Se a coleta de dados continua no mesmo padrão e mesmo assim tivemos esse aumento de registro, significa que a violência aumentou muito. Não tem como saber o real cenário sem saber se houve alguma mudança nos protocolos da segurança pública”, acrescenta Amanda.ResistênciasMarcos Silvério, fundador da Associação da Parada do Orgulho LGBT de Goiás (APOLGBT), diz que os números agora revelados pelo anuário confirmam o que vinha sendo acompanhado pela associação. O representante, que já organizou diversos atos, avalia que um dos pontos que explicam a insistência do preconceito frente a todos os avanços conquistados está justamente na maior visibilidade da comunidade.“Na medida em que ganhamos mais visibilidade, também nos tornamos mais alvo. É uma faca de dois gumes. De um lado o respeito de quem compreende, do outro o ódio de quem é contra a comunidade LGBT”, aponta Silvério, que é militante pela conquista de direitos da comunidade LGBT há 20 anos.Poder de discursos políticos preocupaPara Silvério não é possível ignorar a influência exercida pelos discursos políticos contra a população LGBT. “Políticos estão fazendo discurso de ódio como ferramenta para se perpetuar em cargos. O discurso do líder tem um poder. As pessoas que viviam no submundo, nas sombras, hoje estão empoderadas, porque estão representadas”, diz. No início do último mês, por exemplo, quatro vereadores de Goiânia foram denunciados pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO) por falas apontadas como discriminatórias contra pessoas integrantes da comunidade LGBT ditas dentro da Câmara Municipal. Segundo o MP, os políticos fizeram uso do plenário para disseminar opiniões discriminatórias, enquanto comentavam sobre uma propaganda de uma rede de fast food veiculada no Dia do Orgulho Gay, em junho de 2021.A advogada Amanda explica que uma das estratégias políticas estudadas na Sociologia pode de fato explicar o desencadeamento da hostilidade contra os grupos minoritários. “Em momentos políticos como o que vivemos, é criado o que chamamos de pânico moral. No pânico moral você cria a ideia de que algum mal ameaça a sociedade. Como exemplo nós temos figuras políticas que dizem que LGBTs são pedófilos, que querem doutrinar as crianças”, elenca a advogada.AgressõesO policial rodoviário federal Fabrício Rosa, que é um dos diretores Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTQI+ (Renosp-LGBT), já denunciou formalmente pronunciamentos de cunho homofóbico feitos por parlamentares goianos. “No momento em que autoridades estão pronunciando esta homofobia, eles estão estimulando pessoas a também pronunciarem. O maior problema é que muitos não ficam apenas na verbalidade e vão para a agressão física. É uma espécie de autorização”, diz Rosa. Futuro demanda mais açõesPara superar a violência, Fabrício Rosa considera imprescindível a adoção de políticas mais claras para encarar as agressões contra a população LGBT. Entre elas está a necessidade de discussões sobre o respeito às diferenças. “A ausência de discussão sobre isso nas famílias, nas escolas e nos espaços públicos, a ausência de prevenção e sensibilização naturaliza o preconceito. Faz com que o regime de naturalidade seja o preconceito”, reclama. Os representantes apontam, ainda assim, que houve avanços nos últimos anos. O maior exemplo, citado por todos, é a criação do Geacri. “Mas é preciso ampliar, porque certamente teremos mais denúncias”, avalia Rosa sobre a necessidade de criar Geacris em outros municípios. Marcos Silvério, fundador da APOLGBT, hoje está com 50 anos e diz que as dificuldades não desanimam. “Os processos sociais são geralmente lentos, não acontecem da noite para o dia. Nesses meus 20 anos de militância, vejo mudanças e avanços. Na minha adolescência eu via um cenário ainda pior”, afirma.Entre os pontos citados como conquistas estão o direito à união estável, o direito à adoção, a mudança de nome, a doação de sangue e a criminalização da homofobia. “Eram bandeiras que pareciam inalcançáveis”, avalia Silvério.Leia também:- Ministério Público denuncia vereadores por discriminação após falas contra pessoas LGBTQIA+- Trans relatam preconceito em consultórios médicos- 67 países têm leis que inviabilizam os direitos dos LGBT, diz pesquisa-Imagem (Image_1.2504904)-Imagem (1.2504976)