Era março de 2020, quando uma onda virulenta invadiu o mundo e baixou o decreto: toque de recolher! Há um bicho estranho no ar, vamos nos resguardar até passar. Passou? Se sim, o quê? Talvez o auge de uma pandemia, talvez a necessidade do uso de máscaras, o susto de não haver vacina, sim, mas dizer que passou é coisa outra.A frase que na época publiquei: independente de termos sido positivados ou negativados estaremos para sempre sequelados, continua valendo, só que agora com um agravante, é preciso dizer quais são as sequelas. Não posso deixar de me lembrar de uma senhora bem próxima que me contara após ter sido contaminada pelo covid ter ficado sem educação: “É minha filha, eu fiquei sem educação”. Eu ri muito disso e interrogando-a, respondi: “Não, não é que a senhora tenha ficado sem educação, mas quando passamos muito perto da morte é natural que nos perguntemos como queremos a vida”.Esse exemplo é muito bom, no sentido de apontar como todos experimentaram uma sacudidela no esquema, fazendo reviver a gíria antiga: o esquema furou! Crianças, idosos, ateus, clementes, amantes, doentes, desprovidos de cognição, inteligentes, bandidos, mocinhos, nobres, mendigos. Independentemente, o esquema para todos ali furou. Furo no Real. Conceito lacaniano relacionado à angústia, ao limite, ao impensável, ao difícil de acreditar, ao intransponível, à perda, portanto, relativo à vida como ela é. O fenômeno da covid provocou um furo no Real e demonstra diariamente as mais variadas sequelas, como se o que estava recalcado agora se encontrasse à flor da pele, em exposição, em estado de vulnerabilidade.Gente que muito dorme, antes não dormia, que tinha ótima memória e agora a revelia; gente que bebe muito, antes nem bebia; que só trabalhava, agora, filantropia; gente que não fazia e agora não passa sem terapia. Problemas na pele, cabelo, coração, sono, energia. Sem contar os óbitos traumáticos e tempo para o luto.Tudo mudou e todos em alguma medida sofrem as consequências, cada um que diga qual. Mesmo que a consequência seja negá-lo, sim, ainda há quem o trate como um pequeno resfriado inofensivo, mas aí já se trata de uma psicopatologia mais grave, de negação da realidade.No dia a dia da clínica o que aparece é impossível de ser generalizado, mas para a o cidadão que se encoraja ao divã o negócio é diferente, impossível de ser negado, pois distantes ou próximas, as perdas são incalculáveis, porém, contáveis. Em uma psicanálise é disso que se trata, responder por perdas e escolhas. A sorte é que perdas acenam ganhos! Os registros do imaginário e do simbólico trabalham para lidarmos com o real e, via sublimação muito se fez e se faz!Mesmo sem teatro, mesmo sem cinema, mesmo sem o esquema, vias inovadoras pintaram, tais como uma que nas ruas de Goiânia presenciei e me emocionei. Uma esquina, onde uma família de venezuelanos se esforçava para conseguir algum dinheiro no sinaleiro através de acrobacias. Era hora do almoço, sol quente, da calçada emerge o corpo de um dos filhos, que, de joelhos ergue-se do chão, o menino estende o braço magro, e com o dedinho indicador, olhando para o carro espectador transforma um isopor vazio em brinquedo, o qual gira e gira no ar com brilho no olhar, e ali a alma ali se alimenta! O menino brinca com o vazio, inventando seu próprio malabares em meio à calçada suja e à marmita, de comida, vazia fazendo do lixo, o luxo. Aí está o recado.-Imagem (1.2426791)