Detecção e intervenção precoces de acordo com as dificuldades apresentadas por cada criança, mas dentro de uma lógica não patologizante. Aqui, a aposta é na estruturação da criança como sujeito para decidir os rumos do tratamento. Tendo a psicanálise como referencial, Julieta Jerusalinsky, especialista em estimulação precoce, mestre e doutora em psicologia clínica, é membro fundador da Rede-Bebê e do Instituto Travessias da Infância, iniciativas que reúnem profissionais com o intuito de pesquisar, estudar e formar profissionais nos cuidados na primeira infância e na intervenção com bebês, crianças e adolescentes. Ao POPULAR, ela fala sobre sofrimento psíquico na infância, os prejuízos da pandemia na saúde mental desse grupo com e sem transtorno do espectro autista (TEA), o uso excessivo de telas e o que isso tem a ver com alguns diagnósticos de autismo nos últimos anos.Como a detecção e estimulação precoces são feitas a partir da lógica não patologizante?A detecção precoce não deve ser uma precipitação de diagnósticos, mas sim uma detecção do que não está bem do 0 aos 3 anos. Muitas vezes, essas precipitações fazem com que os pais passem a olhar seus bebês sob a lente da patologia, testando o filho a em checklists disponíveis na internet em vez de brincar, conviver e apostar na potência que a infância tem como mobilidade. Em vez de encerrarmos as crianças em diagnósticos, o que precisamos é apostar na estruturação e intervir sempre que algo está difícil, com articulação interdisciplinar no trabalho em equipe, colocar a dimensão da infância acima de qualquer quadro psicopatológico.O que é acompanhamento interdisciplinar e qual o papel dos pais nesse trabalho?Considerando os cuidados da infância, precisamos de um trabalho conjunto entre família, clínicos, escola e sociedade como um todo. Compreendo que, se nós não nascemos prontos psiquicamente e organicamente e que as experiências de vida são estruturantes, nós, como sociedade, precisamos zelar para dar as melhores condições para a infância em termos de promoção de saúde. E cuidar de crianças implica também em cuidar de quem cuida delas. Os pais e familiares têm um importante lugar como protagonistas, porque eles são os que mais conhecem a criança e os que estão no cotidiano com ela. Nesse trabalho, vamos avaliando o que é difícil para a criança e quais são as brechas disponíveis para que cada vez mais a gente possa estender as formas dela estar no mundo e ampliar seus interesses. Porque quanto mais amplos os seus interesses, mais rica será sua vida e mais trocas ela terá.O que você aponta hoje como os principais impactos da pandemia nas crianças?Detectamos na pandemia o agravamento de algo que já vinha acontecendo, que são as intoxicações por eletrônicos na infância. Ou seja, bebês com menos de 36 meses que, ao invés de brincarem e estarem com os outros, estavam com eletrônicos em mãos. A utilização de eletrônicos, antes que alguém esteja consolidado na relação com o outro na linguagem, tem efeitos muito nocivos no sentido de ocupar o lugar de outras produções. Não é que uma criança não possa ver um desenho animado com um adulto no celular, ou que possa eventualmente escutar uma musiquinha. A nossa preocupação é quando isso ocupa um lugar de situações de convívio, onde a gente começa a ter crianças que são alimentadas olhando para o celular, que, e vez de brincar, estão no celular.E o que esse uso excessivo de telas tem a ver com alguns diagnósticos de autismo?Estamos encontrando uma série de bebês e crianças que, por conta da inexperiência pandêmica e dessas intoxicações por eletrônicos, acabam tendo dificuldades no seu desenvolvimento (psicomotor, oralidade, na convivência com o outro). Essas dificuldades, muitas vezes, são categorizadas dentro do TEA, fazendo uma extrapolação desse diagnóstico. Nem todo sofrimento psíquico e dificuldade na relação com o outro na primeira infância é autismo, mas precisa ser detectado e tratado para favorecer a estruturação.Que caminho seguir a partir dessa detecção de dificuldades?É preciso brincar, conversar e conviver com as crianças independente do diagnóstico. A primeira coisa que devemos fazer nesse momento final de pandemia, em que já arrastamos dois anos de privações de uma série de experiências estruturantes, é fomentar essas experiências antes de passá-las por triagens que busquem psicopatologias. Justamente para que elas possam recuperar a condição do convívio, da brincadeira e da fala no encontro com semelhantes. Porque se a gente levá-las para uma série de instrumentos que buscam por patologias, o que vamos acabar produzindo é uma pandemia de psicodiagnósticos.