“Gritei três vezesno fundo do poçoe mais setee todos os númerosda cabala e do mito. Mas não escutei,como resposta,nem mesmo o ecode meu próprio grito.”(Circuito Fechado, poema que integra a antologia À Sombra de Eva) A voz sufocada nos versos de Circuito Fechado expressam a temática que permeia À Sombra de Eva: uma antologia sobre o feminino, novo livro da poetisa e crítica literária goiana Darcy França Denófrio. A obra reúne poemas produzidos pela autora ao longo de mais de quatro décadas, trazendo a figura central da mulher de diferentes épocas, cenários e contextos, ultrapassando o nível meramente individual.A antologia não foi feita por Darcy. No entanto, a seleção de poemas e organização da obra foi trabalho de alguém muito especial para ela: Celso Henrique Denófrio Garrote, seu neto. “Ele, leitor atento, percebeu uma temática recorrente em minha obra poética completa e realizou uma ‘uma antologia sobre o feminino’, que denominou À Sombra de Eva. Nome, aliás, do segundo poema do livro Ínvio Lado, obra que publiquei no ano 2000”, conta a escritora.O livro foi uma surpresa para a avó. “Ele fez tudo em sigilo e me presenteou com a obra antológica pronta”, revela. Além de Ínvio Lado, os versos selecionados podem ser encontrados nos outros quatro volumes de poesia publicados por ela: Voo Cego (1980), Amaro Mar (1988), Poemas de Dor & Ternura (2008) e Uma Voz e o Silêncio (2014).Além da produção lírica, a escritora publicou livros didáticos e ensaios de crítica literária, ultrapassando as duas dezenas de obras. Professora aposentada da Universidade Federal de Goiás, Darcy coleciona diversas premiações em todas as áreas de atuação. Nasceu em 1936 em Jataí, no Sudoeste Goiano, mas logo se mudou para a capital, onde construiu sua carreira, se casou e teve três filhas.Em sua obra completa de poesia, destaca-se a predominância das questões existenciais. A influência de suas experiências de vida é percebida em temáticas como a repressão, o machismo, a religião e a fé – estes dois últimos inspirações centrais de Uma Voz e o Silêncio, lançado em 2014. Educada em um colégio de freiras espanholas, ela passou longos anos no internato.No poema Via-Crúcis, um verso conta ao leitor que “havia camisola no banho”. “A minha experiência no internato de freiras agostinianas, a partir de meus 9 anos, aguçou o sentimento de culpa. Quase tudo era pecado. Éramos herdeiras de Eva. Daí o banho de camisola”, diz. “O tema sempre me interessou, porque tive uma educação patriarcal, reforçada pela que eu recebi no internato”, continua.Para Darcy, em Ínvio Lado é onde o feminino mais se expõe, talvez por influência da leitura de obras como As Brumas de Avalon, da norte-americana Marion Zimmer Bradley, que inspirou o poema Sob o Manto da Grande Mãe, que abre a publicação. “Esse poema se opõe ao segundo, À sombra de Eva. No primeiro, a mulher é altamente valorizada. Tempo das sacerdotisas na Bretanha”, explica.Já o segundo, que dá nome ao lançamento, coincide com os primeiros tempos do cristianismo. “Ou seja, o Velho Testamento e o que se vê em Malleus Maleficarum: O Martelo das Feiticeiras, verdadeiro manual da Inquisição, escrito pelos dominicanos Heinrich Kramer e Jacob Sprenger. Aí o que se vê é a honra da mulher tripudiada”, comenta.Condição históricaAo longo de mais de 40 anos, Darcy experienciou, conheceu e escreveu sobre diferentes figuras femininas. Nessa antologia, que reúne tantas delas, o que se pretende é trazer uma figura superior, que se integra ao meio cósmico e busca vivenciar a unidade com o homem, a terra e o céu. A mulher herdeira de Eva, obscurecida pela sua sombra, tem voz restituída e testemunhada. “A temática predominante nos poemas de Darcy França Denófrio alia sentimentos de seu próprio estar no mundo como mulher e reflexões mais amplas, sobre a condição das mulheres hoje e no passado”, diz um trecho da apresentação do livro, escrita por Vera Maria Tietzmann Silva.“Gosto de examinar a condição histórica do feminino. Tenho dois poemas antípodas: Ao Homem Patriarcal e Ao Novo Homem, ambos de Ínvio Lado”, comenta Darcy. Como crítica literária e professora universitária, lutou ativamente para que homens e mulheres fossem estudados igualmente. Entre os seus ensaios críticos, ela cita Antologia do Conto Goiano e O Conto Contemporâneo, ambos em parceria com Vera Maria Tietzmann Silva, para trazer uma reflexão. “Nos dois volumes é rara a contribuição de mulheres, porque palmilhou um longo caminho para conquistar o direito de ser escritora”, aponta.O lirismo de Darcy França DenófrioVoo Cego, Editora UFG, 1980Venceu o Prêmio Estadual Cora Coralina de 1981, da União Brasileira de Escritores. São 42 poemas, com escrita que chama a atenção pela quase obsessiva preocupação com o uso do hífen, utilizado na ligação, aproximação e paralelismo de palavras contrastantes ou complementares. Amaro Mar, Editora Itatiaia, 1988Com a obra, recebeu o Prêmio Literário Nacional do Instituto Nacional do Livro em 1987 e o Prêmio Especial para Autor Goiano, na 1ª Bienal de Poesia Itanhangá. Ínvio Lado, Editora UFG, 2000Lançado como parte da Coleção Vertentes, o livro foi ganhador do Prêmio Jorge de Lima em 2000, da Academia Carioca de Letras, do Rio de Janeiro. Poemas de Dor & Ternura, Cânone Editorial, 2008O livro é organizado em três blocos: A Prenda dos Dias, Dor Decantada e Resgate Lírico. Neles, o olhar da autora aponta para a dualidade da experiência humana, alternada sempre entre os polos do sofrimento e do prazer. Uma Voz e o Silêncio, Cânone Editorial, 2014“São poemas para rezar”, definiu a escritora sobre o livro. Nos 52 poemas, ela se inspira em passagens bíblicas, todas indicadas antes dos respectivos textos.-Imagem (Image_1.2346650)