O convívio de Augusto de Campos com a poesia dos trovadores medievais de Provença, no sul da França, se tornou entre nós um caso clássico de tradução criativa. Em sua fidelidade ao espírito do poema, deixando-se conduzir pela ginga mágica da linguagem, o concretista incorpora os poetas Arnaut Daniel e Raimbaut d’Aurenga ao mundo cultural da língua portuguesa.Reeditado pela editora Laranja Original, Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti aproxima da sensibilidade moderna as técnicas de métrica, rima e ritmo dos provençais do século 12, com o cuidado de refletir as suas contribuições estéticas à lírica do ocidente. A segunda edição tem um breve prefácio do tradutor, iluminuras, manuscritos e uma resenha da poeta Ana Cristina César sobre Mais Provençais (1982). Campos traduziu quatro canções de Raimbaut, todas as 18 conhecidas de Arnaut e mais uma de autoria incerta, para depois alcançar os italianos Dante e Guido Cavalcanti, que tinham dívidas com os predecessores de Provença.Os ensaios do concretista prolongam a experiência dos poemas em seus recuos ao tempo histórico dos traduzidos e às escolhas de tradutor comprometido com a linguagem de invenção. O recorte do livro remete a uma síntese crítica de Ezra Pound - “depois de Provença, Dante e Guido Cavalcanti na Itália” - e a uma passagem da Divina Comédia, em cujo Canto 26, do Purgatório, “o melhor artífice da língua materna” surge no fogo ardente: “Eu sou Arnaut, que choro e vou cantando./ Choro a fúria de outrora, sem furor,/ e o prazer do porvir sigo esperando”.Os provençais desenvolveram a melopeia, a poesia carregada de musicalidade, na classificação de Pound, e modelaram a própria estrutura lírica, legando aos sucessores técnicas inovadoras de versificação, a exemplo de Arnaut e suas rimas polifônicas ou separadas, aquelas que não são repetidas no interior de uma estrofe, mas reproduzidas nas demais. Os mestres de ontem dialogam com a arte poética do presente.O mistério da palavra “noigandres”, na língua occitana, se colou à história do grupo da poesia concreta. Campos acolhe o lexicógrafo Emil Levy: “l’olors d’enoi gandres” significa um “olor que afugenta o tédio”. Canta Arnaut, inventor de formas: “então meu ser quer que eu colora o canto/ de uma flor cujo fruto seja amor,/ grão, alegria, e olor de noigandres”.Se faltasse a essas canções o olor contra o tédio, teríamos ainda o olor da vida contra a morte. Desejo, sexo, paixão, bosques, “flores e fiorituras”. À margem da moral religiosa, o canto dos trovadores não teme o amor bruto e se enche de sensorialidade e figurações da natureza.Canta Raimbaut, precursor de Arnaut: “Já resplende a flor inversa/ por troncos, barrancos, pedras./ Flor? Neve, granizo e gelo/ que escorcha, tortura e trinca,/ guinchos, gritos, brados, silvos,/ por folhas, ramos e vimes;/ mas vivo estou, verde e feliz,/ ao ver já sem vida os servis”. E o belo desfecho: “Que os olhos deste ser feliz,/ por não vos ver, querem ser vis.”Arnaut se dirige a mulheres sem postura passiva, soberanas do próprio desejo, bem distantes da ideia de musa estática. Ele era homem de contracorrente: “Eu sou Arnaut que amasso o ar (amo Laura)/ e caço a lebre com o boi/ e nado contra a maré”.Num espelhamento, Augusto de Campos também rema contra a maré em sua eleição da poesia como reduto último da beleza e da insubmissão, matriz de todas as vanguardas. No Brasil, caímos outra vez num “tempo dos assassinos”, para lembrarmos Arthur Rimbaud, que alinhava a poesia à mudança da vida. Invenção oferece o que pode haver de mais essencial na arte poética: afirmação da vida pelas palavras e revelação do alcance do engenho humano. Tem mais: olor contra o horror.