Em 1839, caiu o mundo em Goiás. O Rio Vermelho, cortando a então capital Vila Boa e que produziu tanta riqueza em forma de ouro no século 18, bufava, com suas águas arrastando tudo o que encontrava pela frente. Aquela grande enchente mudou a geografia local. Onde hoje está a réplica da Cruz do Anhanguera, bem em frente à atual Ponte da Lapa, a mesma da casa de Cora Coralina, existia a Igreja da Lapa. Naquela enchente, o templo, um dos mais antigos da província, sucumbiu. “A igreja rodou inteira, com os sinos batendo”, descreve o historiador Antônio Caldas Pinheiro. “Afirmam que o sineiro morreu naquele dia.”Mais um episódio entre tantos que compõem a história da atual cidade de Goiás, cujos moradores rezavam naquela igreja na beira do rio quando a notícia de que nas margens de outro curso d’água, o Riacho Ipiranga, em São Paulo, d. Pedro I havia gritado Independência ou Morte. Uma novidade que demorou um bocadinho para chegar até aqui. O historiador Nasr Chaul, autor do livro Caminhos de Goiás, calcula que as viagens entre Vila Boa, então capital da província, e o Rio de Janeiro, sede do Império, duravam quase três meses. “Goiás vivia um hiato. Havia um isolamento naquele período”, reforça ele.Nesta quarta e última reportagem da série especial sobre os 200 anos da Independência, o POPULAR traz um panorama de diferentes aspectos de Goiás de dois séculos atrás. Naquele 1822, a região sofria uma intensa decadência com o exaurimento das jazidas de ouro. Isso é atestado pelos documentos oficiais de governadores e intendentes – lamentando as vacas magras – e por relatos de viajantes estrangeiros que passaram por aqui. O botânico francês Auguste Saint-Hilaire, o médico e geólogo austríaco J. Emanuel Pohl e o mineralogista inglês John Mawe, por exemplo, escreveram sobre Goiás do início do século 19.Esses testemunhos dão um retrato muito fiel, relevante e, por vezes, inusitado de como as coisas funcionavam na então Capitania de Goiás – depois alçada à condição de Província apenas um ano antes da Independência brasileira. O ponto central era Vila Boa, antigo Arraial de Sant’Anna, fundado pelo segundo Anhanguera no século 18. Aqueles viajantes estrangeiros percorreram essas paragens um pouco antes ou um pouco depois de 1822 e enfatizam as dificuldades de percorrer essas trilhas. Isso não os deixava muito propensos a serem bondosos com o que viam. Ainda assim, essas impressões são interessantes.“(Goiás) possui um comércio muito rudimentar, que se resume aos produtos acima mencionados (sal, farinha, milho, feijão) e ao gado criado nas fronteiras, também algum algodão, e, ocasionalmente, uns poucos artigos peculiares, enviados ao Rio de Janeiro”, informa John Mawe, no livro Viagem ao Interior do Brasil. “As mulas voltam carregadas de sal, ferro, estampadas de algodão barato, lãs (principalmente baetas), chapéus, armas de fogo, pólvora e munição de chumbo, e diversas ferramentas de artífices.” Um marasmo que parecia contaminar os ânimos da população, boa parte dela apenas sobrevivendo.“Só às 8 horas da manhã o trabalhador se dirige à mina e, às 9 horas, vai para casa por meia hora para o pequeno almoço. Um chifre de boi dá o sinal para a volta ao trabalho, que então é continuado até as 12 horas. A refeição ao meio-dia e a sesta tomam mais duas horas e já às 5 horas cessa o trabalho. Quando chove, não se trabalha absolutamente”, detalhou J. Emanuel Pohl. “Um particular de Vila Boa envia o seu negro a procurar o ouro no leito do Rio Vermelho, que atravessa a vila: o escravo é obrigado a trazer ao Senhor 900 réis no fim da semana”, completou Saint-Hilaire, no livro Viagem à Província de Goiás.Padre e historiador, Luis Palacín dedicou-se a reunir esses documentos, publicando obras fundamentais nesse sentido. Outro conjunto de documentação relevante está depositado no Instituto Histórico do Brasil Central, da PUC Goiás, coordenado pelo professor Antônio Caldas. “Naquela época, Vila Boa já possuía algumas construções que ainda hoje existem, como as igrejas da Boa Morte, da Abadia, de Santa Bárbara”, assinala. Outras entraram em ruínas e foram refeitas, como a Igreja do Rosário, antiga Igreja do Rosário dos Pretos, e a Catedral de Sant’Anna. A cidade de Goiás é o núcleo urbano do Estado mais preservado.O Palácio Conde dos Arcos e os chafarizes da Lapa e da Carioca já integravam a paisagem urbana da antiga capital, assim como o atual Museu das Bandeiras, anteriormente a sede da Câmara e Cadeia de Goiás. O Hospital São Pedro d’Alcântara foi inaugurado três anos após a Independência, e seu nome homenageia o imperador. O Lyceu de Goyaz só seria fundado 24 anos depois. O coreto da praça central também ainda não havia sido construído, assim como o prédio do Fórum. O Gabinete Literário Goiano só seria aberto 42 anos depois. A entrada da cidade era pelos arraiais de Ouro Fino e Ferreiro, hoje extintos.Goiás passou por intensas transformações em dois séculos. A agropecuária, com o tempo, tornou-se a principal atividade econômica, algo ainda incipiente em 1822. “São vaqueiros, e sua principal atividade consiste em laçar o boi, ou em reunir de tempos em tempos no curral os grandes rebanhos do deserto, a fim de marcá-los com o sinete que deve fazê-los conhecer. (...) Os pastores de Goiás não são, por sua habilidade, menos célebres que os outros habitantes do sertão”, registrou o historiador francês Ferdinand Denis no livro O Brasil: História, Usos e Costumes dos Habitantes Desse Reino, lançado em Paris em 1822.O mesmo pode ser dito do comércio, outro meio de produção de riqueza que viria a ser relevante. “Existe em Vila Boa (1819) um número considerável de lojas bem abastecidas, as quais, como em todas as cidades do interior, vendem indiscriminadamente mantimentos, miudezas e variados tipos de tecidos”, descreve Saint-Hilaire, em Viagem à Província de Goiás. “É no Rio de Janeiro que se abastece a maioria dos comerciantes da cidade, os quais pagam exclusivamente com ouro os artigos que recebem. O número de vendas é igualmente considerável, sendo prodigiosa a quantidade de cachaça que nelas é vendida.”E, claro, havia perigos variados. “Mesmo em Vila Boa não há farmácia bem organizada, apesar de existir um hospital militar, que deve despender considerável soma anual. Fora alguns remédios simples, que são adquiridos nas vendas, nenhuma assistência podem esperar os enfermos”, alertava J. Emanuel Pohl, no livro Viagem no Interior do Brasil. “Logo que alguém adoece, é habitual que lhe seja dada a extrema-unção”, vaticinava. Um retrato nada abonador, mas coerente com outros relatos da mesma época. Duzentos anos atrás, a Independência encontrou Goiás em um momento precário. Ainda bem que o tempo passa.Uma pasmaceira danadaQuem andava pelas ruas das vilas e arraiais de Goiás em 1822 veria um cenário bastante tedioso. A capitania estava longe de tudo, a educação formal era privilégio de poucos, a mácula da escravidão perdurava e as relações com a maioria dos indígenas não eram nada amistosas, na maior parte das vezes. A pobreza reinante refletia uma economia combalida diante de fazendas improdutivas, minas de ouro abandonadas e dificuldades de trânsito entre outras partes do País. Os viajantes que conheceram a região naquela época revelam exatamente essa situação de poucas perspectivas positivas.“A maior parte da Capitania de Goiás encontra-se inculta e, por isso, é improdutiva”, atestou J. Emanuel Pohl, em Viagem no Interior do Brasil. “Assim como toda a província de Goiás também o vale do Rio Paranã é escassamente povoado, e a postulação aqui custará incremento, por faltar no subsolo a incrível riqueza de ouro, que, ainda não há cem anos, atraiu os primeiros colonos ao interior desta província”, informavam os naturalistas alemães Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Phillip von Martius, em Viagem pelo Brasil, entre 1817 e 1820. Eles também mencionam doenças: “febre nervosa, septicemia e desinterias”.As paisagens urbanas chamam, igualmente, a atenção de quem chegava a Goiás há dois séculos. “Durante o dia só se veem homens nas ruas da cidade de Goiás. Tão logo chega a noite, porém, mulheres de todas as raças saem de suas casas e se espalham por toda parte. Geralmente fazem o seu passeio em grupos, raramente acompanhadas de homens. Envolvem o corpo em amplas capas de lá, cobrindo a cabeça com um lenço ou um chapéu de feltro. Também nessas horas elas caminham umas atrás das outras, e antes se arrastam do que andam”, avaliou o naturalista Saint-Hilaire, em Viagem à Província de Goiás.O mesmo autor tira suas conclusões sobre outros aspectos sociais. “Em nenhuma outra cidade [referindo-se a Vila Boa] o número de pessoas casadas é tão pequeno (1819). Todos os homens, até o mais humilde obreiro, têm uma amante, que eles mantêm em sua própria casa. As crianças nascidas dessas uniões ilegítimas vivem ao seu redor, e essa situação irregular causa tão pouco embaraço a eles quanto se estivessem casados legalmente.” Saint-Hilaire fala ainda da decadência reinante. “Não existia em Santa Luzia [atual Luziânia] uma única pessoa que se dedicasse em grande escala à exploração das minas.”O que ocorria em Santa Luzia repetia-se em outros lugares da província. “A maioria dos habitantes de Santa Cruz é formada atualmente (1819) por agricultores pobres, que só vão ao arraial aos domingos. A população permanente no povoado, muito escassa, é composta de um pequeno núcleo de artesãos, de prostitutas, de dois ou três proprietários de cabarés e, finalmente, de alguns mulatos e negros livres, que passam a maior parte de sua vida sem fazer nada. São estes últimos que ainda saem à cata do ouro”, analisa Saint-Hilaire. “Muitos arraiais já estavam deteriorados”, reforça o historiador Antônio Caldas.Alguns arraiais, como mostramos na terceira reportagem desta série, sumiram do mapa, enquanto outros foram criados naquele período. Entre os praticamente esquecidos estão o de Santa Rita e d”Antas, localizados onde hoje é o município de Faina. “Lá houve três igrejas e chegou a ser uma paróquia”, contextualiza o historiador Antônio Caldas. Ambos são citados nos relatos de J. Emanuel Pohl. Já o porto de Santa Rita do Paranaíba foi criado em 1824. Ali seria a gênese da cidade de Itumbiara. Pouco anos antes, em 1816, Goiás havia perdido a região do Triângulo Mineiro, que pertenceu à capitania por 60 anos.Que Independência foi essa?O Museu do Ipiranga, em São Paulo, localizado bem ao lado do exato ponto onde há 200 anos Dom Pedro I deu o grito da Independência, está sendo reaberto após intermináveis anos de reforma. A principal peça de seu acervo é um imenso quadro de Pedro Américo, a imagem que povoa os livros de História e o imaginário de milhões de brasileiros. Com seus 7 metros de comprimento e quase 3 de altura, ele mostra o primeiro imperador do Brasil independente num majestoso cavalo. Em torno dele, cavaleiros louvam o gesto, homens que formariam os Dragões da Independência, regimento ainda hoje existente.Pois é, o que o quadro tem de impressionante tem também de fictício. “Eu diria que dentro do quadro do Pedro Américo já existe uma enganação”, atesta o jornalista Laurentino Gomes, autor do livro 1822 – além dos best-sellers 1808, 1809 e a da trilogia Escravidão. “D. Pedro estava com dor de barriga, montava uma besta de carga, a guarda de honra era de sertanejos do Vale do Paraíba, pessoas muito simples e não estavam vestidas daquele jeito.” Naquela ocasião, Dom Pedro estava em uma viagem para amainar ânimos em São Paulo, quando também conheceu a Marquesa de Santos, sua amante mais famosa.“O quadro do Pedro Américo é uma cópia de outra tela que está no Museu do Louvre, de Jean Louis Meissonier, que celebra uma vitória de Napoleão. Mas é um Brasil sonhado do século 19. Esse Brasil que, segundo a perspectiva das elites da época, deveria ser baseado na Europa”, afirma Laurentino, para fazer uma comparação. “Há um choque de narrativas.A maior contradição está em outro quadro, da Biblioteca Nacional da Austrália, uma aquarela, de um inglês chamado Augustus Earl, que é pequenininha e mostra outra cena daquele mesmo 1822, um grupo de negros sendo açoitado no Calabouço do Rio de Janeiro.”Duas versões do Brasil que continuam a se contradizer, dois séculos depois. “Hoje eu vejo muita desilusão”, opina Laurentino. “Apesar de certo esforço dos veículos de comunicação, que têm projetos especiais, não vi nenhum entusiasmo pela efeméride, ao contrário de 1922, no primeiro centenário. Naquela época foi um acontecimento nacional. Trouxeram os ossos da Princesa Isabel para o Brasil, os portugueses fizeram a primeira travessia do Oceano Atlântico de avião, com Sacadura Cabral e Gago Coutinho, teve a Semana de Arte Moderna. O Brasil de 1922 estava muito energizado, sonhava com grandes ambições.”O contexto é bem diferente agora. “Esse Brasil de 2022 é um País intimidado, assustado consigo próprio. A realidade é muito frustrante, quando você olha a situação da economia, a persistência da corrupção, da desigualdade social. O ambiente é desanimador”, constata. E o que era para ser uma festa passou a se configurar também em um motivo de temor, de instabilidade política. “A impopularidade do Presidente da República contribuiu para que a celebração ficasse tímida. Vamos celebrar quem? Nem a Copa do Mundo ajuda. Se tivesse uma Copa agora e o Brasil fosse campeão, ajudava, mas a Copa vai ser em novembro.”O bicentenário é ainda o momento para refletir a respeito da forma incomum com que nossa Independência ocorreu. Afinal, foi o próprio herdeiro do trono da metrópole quem proclamou a autonomia da ex-colônia, possivelmente um caso único na História recente. “Havia o medo de que se o Brasil optasse por um processo de Independência republicano, como aconteceu com o restante da América espanhola, os caudilhos, os chefes políticos regionais entrariam em guerra entre si e o Brasil poderia se fragmentar”, explica Laurentino.“Mas existia um segundo medo ainda maior, que era o de uma guerra étnica.”Essa segunda hipótese era levantada em razão do modelo escravagista que perdurava no Brasil em 1822. “Para lutar uma guerra civil, os senhores políticos teriam que armar seus escravos. Esses escravos armados, imbuídos das ideias de liberdade que chegavam da Europa e dos Estados Unidos, poderiam se vingar dos brancos, como ocorreu no Haiti em 1791 e 1792. No calor da Revolução Francesa, os escravos de lá trucidaram os brancos”, relembra o escritor. “Diante desse cenário, a elite daqui optou pelo caminho conservador: romper o vínculo com Portugal, mas mantendo o herdeiro da Coroa Portuguesa no trono.”