Aos 8 anos de idade, a empresária Milena Curado aprendeu a bordar com sua avó. Na cidade de Goiás, esse tipo de aprendizado é algo natural. As habilidades, em várias áreas, costumam ser transferidas no seio das famílias dentro de seus casarões de longos corredores, portas de madeira de lei e quintais que parecem não ter fim. É em um desses imóveis da antiga Vila Boa que está instalada parte da linha de produção e da loja da grife Cabocla, que Milena criou partindo dos saberes ancestrais de lidar com as agulhas, os fios, o algodão e, sobretudo, com a criatividade, nesse trabalho de preservação de memórias.“Busco fazer com que meu trabalho represente a história desse lugar ao qual pertenço”, afirma. “Eu me inspiro na iconografia, no casario, nas flores do Cerrado. Meu trabalho sempre remete à cidade de Goiás. E nisso eu coloco minha singularidade”, explica. Marcas pessoais que atravessam os versos de Cora Coralina, que busca inspiração nos tecidos mais rústicos, como a chita, que Milena vai recolher nas próprias saudades os elementos que fazem das peças exclusivas que fabrica símbolos de sua terra e sua gente. “Desperto esse lado nostálgico. Isso está nas roupas, nos objetos, nas ruas”, exalta.Segundo Milena, esse resgate do bordado foi necessário por se tratar de uma arte que quase se perdeu em razão do desinteresse das novas gerações em aprender com as mais antigas a compor essas figuras nos tecidos. Mas cerca de 13 anos atrás, o quadro mudou. “Eu comecei devagar, como uma forma de homenagear a cidade. Mas, em 2008, percebi que poderia ser mais do que isso.” A concessão do título de Patrimônio da Humanidade a Goiás e o maior número de turistas por suas ruas, ávidos por consumir algo que fosse típico da antiga Vila Boa, impulsionaram o projeto Cabocla.A ideia ganhou corpo, ganhou tons, ganhou o incentivo da avó bordadeira de Milena e ganhou um viés social. Por conta da escassez de mão de obra para os trabalhos manuais, ela levou a arte para dentro da unidade carcerária da cidade. Assim, mulheres e homens que cumpriam penas no presídio passaram a colaborar com a marca, trabalhando nos bordados, tendo uma renda garantida e fazendo um trabalho de ressocialização efetivo. “Muitos saíram da cadeia e continuaram trabalhando comigo por algum tempo ainda, mulheres e homens.” Vidas transformadas dentro e fora da prisão.Com o tempo, a marca Cabocla foi ficando mais conhecida e suas peças tiveram mais visibilidade. Hoje, Milena comercializa os vestidos, as batas, as almofadas, os aventais e todo o seu rico e variado catálogo para gente de todo o Brasil. No período mais duro da pandemia, quando a cidade de Goiás praticamente ficou fechada aos visitantes, foi o comércio via internet que assegurou a continuidade do negócio. Clientes não faltam. Das filhas do governador Ronaldo Caiado a pessoas que se apaixonaram pelos bordados ao vê-los no programa Mais Você, de Ana Maria Braga, a demanda é constante.Agora, Milena, sempre com as estampas inspiradas nos elementos genuinamente goianos, tem ampliado sua arte para o tricô e para vestidos versáteis, de dupla face, para manter-se não só antenada com as tendências, mas para continuar levando um olhar muito especial para a cidade onde nasceu e que lhe é a maior das referências. “Inovar por meio do simples. Esse é o segredo. Na valorização da chita, do algodão de sacaria, nos tecidos que antes apenas os escravos usavam, que tantas vezes só foram utilizados para fazer panos de prato, a gente cria coisas lindas, levando Goiás, sua arte e sua poesia para o mundo.”As velhas máquinas de costura, as antigas e hábeis agulhas, o improviso inspirado para dar conta das necessidades mais urgentes em termos de vestuário moldaram um imaginário em cidades como Goiás. Os bordados da Cabocla representam esses saberes que ainda conseguem ser transmitidos, salvaguardados, mas sempre com novidades. “Temos o movimento Sou de Algodão, que produz roupas com menos impactos ambientais. Essa simplicidade é muito importante. Goiás é uma cidade de pessoas simples. Eu sou simples. Mas o simples é o diferencial, basta que a gente tenha um novo olhar para ele”, afirma.Quantos sabores tem Goiás?O pastelinho de Goiás, feito com aquele recheio de doce de leite e uma cobertura de canela que casa maravilhosamente bem. E aquele docinho de limão recheado, que, quando a gente coloca na boca, até se derrete. Tem empadão também, na melhor tradição goiana. E o alfenim, doce-escultura que reproduz sentimentos e cujo jeito de fazer está se perdendo. E na casa de Cora, doces que habitam aquela cozinha de fogão a lenha e tacho de cobre há tantos anos, desde que a moradora ilustre dividia seu tempo entre caldas e versos. Goiás é assim, uma profusão de sabores, de texturas, de sentimentos em forma de delícias.Essa culinária, que traz receitas de tantos cantos, que vão de Portugal à África, que chegaram no feijão tropeiro e no arroz carreteiro dos homens que batizam essas matulas feitas para durar nas viagens longas em um sertão que era hostil e misterioso, também integra o patrimônio imaterial de uma antiga capital onde se come muito bem. Nos restaurantes mais tradicionais e rústicos, onde a gente se serve na panela fumegando com aquele frango caipira ou aquela carne de panela cozida na banha de porco, ou nos pastéis do Mercado, não se passa por Goiás sem experimentar alimentos de sustança.Mas a cidade também já oferece bistrôs refinados, onde se pode apreciar um bom vinho, comer risotos excelentes e desfrutar de um ambiente aconchegante. Após o título de Patrimônio da Humanidade, com a chegada de mais turistas e mais mão de obra especializada, esse panorama veio se transformando, mas não perdendo seu sabor original, aquele que inclui frutos do Cerrado, o arroz com pequi e guariroba, as receitas que saem dos caderninhos da avó. Nas janelas coloridas de tantos casarões, doces convidam a testar esse paladar tão especial. Com açúcar, com afeto. Ingredientes centrais dessa história.Patrimônio imaterial é assim. É tudo aquilo que nem sempre se vê, mas cuja presença é inegável. Pode ser aquele prato delicioso que nos desperta as memórias mais saborosas.Pode ser aquela festa de que você se lembra em sua infância e que continua ali, a encantar os filhos e os netos que vieram depois. Pode ser aquele hino decorado da procissão, aquele poema declamado desde os tempos de colégio, pode ser aquele som que supera os ruídos ou aquele quadro que retrata tão bem uma paisagem conhecida. Pode ser o colorido das areias da serra que em todo pôr do sol teima em ficar dourada lá no horizonte.Patrimônio imaterial é algo nem sempre tangível, mas que nos toca profundamente. Toca nossas emoções, nossas recordações, nossos laços familiares e de amizade. Toca nosso jeito de falar e de nos vestirmos, nossas referências mais ancestrais, aquelas que de tão antigas nem sabemos mais, com certeza, de onde vieram. Toca nossa fé, nossas expressões de alegria, nossa relação com o lugar em que vivemos, com a atmosfera que respiramos, com nossas características mais profundas e irrevogáveis. Quem nasceu ou mora em Goiás conhece bem todos esses sentimentos. E a cidade sabe disso.