“Tenho uma antipatia profunda, antiga, por quem carrega uma arma no bolso. A partir desse sintoma – pequeno, por fim, embora tão chamativo –, pode-se reconstruir uma pessoa inteira, com todos os seus sentimentos. Poder-se-á reencontrar, no fundo dessa mania de andar armado, algumas justificações infantis, talvez: não pode nascer do nada a ideia de que os outros são perigosos, inimigos, desprezíveis, e que, portanto, é necessário munir-se de antemão secretamente contra as intenções dos outros.” Assim se expressou, em artigo escrito em 1962, o cineasta e escritor Pier Paolo Pasolini, mostrando todo seu antifascismo.Para um italiano nascido em 5 de março de 1922 – mesmo ano da ascensão de Benito Mussolini ao poder, com sua famigerada marcha das milícias Camisas Negras sobre Roma – e que passou sua infância e adolescência vendo o Duce impor suas vontades, cometer arbitrariedades e jogar o País em guerras que destruíram a nação, o fascismo ficou impresso nas memórias mais dolorosas. E ele fez dessa luta constante um norte de sua criação, revelando-se um artista que via a sociedade para além do superficial, indo buscar nas suas profundezas, das hipocrisias sexuais à violência política, sua matéria-prima.O resultado é uma obra cinematográfica e também ensaística das mais contundentes e provocativas de seu tempo. Mesmo inserido em um cinema com tantas influências poderosas, como Federico Fellini e Roberto Rossellini, ele conquistou um espaço no qual foi reconhecido mundialmente, ousando em produções que causaram polêmica e espanto, mas que também podiam ser vistas e interpretadas como alegorias de tempos turbulentos ou encharcados de incertezas que ele comentava, simultaneamente, em artigos em jornais, em manifestações públicas, em sua poesia e até em sua pintura. Talentos múltiplos e ruidosos.É interessante perceber que Pasolini teve trajetórias um tanto distintas em seu país e fora dele, assim como viveu diferentes fases da fama. Seu momento de reconhecimento inicial vem não com o cinema, mas com a literatura. Filho de uma professora e de um militar de carreira, ele nasceu na cidade de Bolonha, onde cursou Letras na universidade local. Ainda na juventude, escreveu seus primeiros versos, com que já angariou certa fama, o que vai se consolidar ao se mudar para Roma, em 1950, quando também tem despertada a paixão pelo cinema ao entrar em contato com uma metrópole que respirava aquela arte.Mas ele ainda demora para se lançar em uma carreira mais consistente atrás das câmeras. Nos primeiros anos de sua vida romana, continuou a se dedicar à literatura e o romance de estreia, Meninos da Vida, só vem em 1955. É um trabalho que até pode ser considerado um “romance de formação”, principalmente pela idade dos personagens – adolescentes que ingressam na vida adulta – e pelas experiências que vão passar, com aprendizados duros sobre uma rotina que deixa de ser despreocupada para se tornar cruel. Ao mesmo tempo, já é um Pasolini que revela uma preocupação que o acompanhará sempre: os excluídos.Sua leitura de uma Roma em declínio diante de um regime que se envolve na Segunda Guerra e compartilha do ônus da derrota também é representativa de uma visão ácida sobre o mundo e as pessoas. Além da exclusão física e social daqueles meninos – que guardam certo parentesco com os Capitães da Areia, de Jorge Amado, ou com os garotos de A Gangue Escarlate de Asakusa, de Yasunari Kawabata –, Pasolini também faz seus jovens anti-heróis padecerem de preconceito linguístico, ampliando a incompreensão que os cerca. Em Roma, Salvador ou Tóquio, fenômenos próximos que ocorrem e traumatizam.Em 1959, ele lança outro livro que trata dos dramas sociais de uma Itália que ainda tenta se reerguer. Uma Vida Violenta traz descrições brutais do cotidiano das periferias, em que a pobreza suprime muitos sentimentos humanos. É um livro importante porque mostra um homem que já não se contenta com a palavra escrita para fazer suas denúncias. Ele vinha trabalhando como roteirista, mas sentiu a necessidade cada vez mais imperiosa de criar também no cinema e esse romance dialoga com um de seus filmes mais impactantes, Accattone, lançado em 1961, história de um cafetão em uma Roma pobre e prostituída.A partir daquele momento, o nome que estava muito mais associado a livrarias e que teria seus volumes de poesia editados em vários países passava, também, a estampar os cartazes dos cinemas. E nunca Pasolini entregou um filme que não causasse certo alvoroço em razão das temáticas e abordagens que escolhia. Ser discreto jamais fez parte de seu projeto artístico, mas, ao invés de carregar nas tintas ou apostar num lirismo mais explícito, como fazia Fellini, por exemplo, ele elaborou roteiros e voltou sua câmera para gente sofrida de verdade, quase a exercer o papel de documentarista de uma miséria palpável.Se o “desajustado” Accattone, como anunciava o subtítulo do filme, apresentava ao público uma figura masculina do submundo, mas com sua dose de carisma, Mamma Roma, lançado em 1962, traz a estrela Ana Magnani vivendo uma prostituta de meia idade que desenvolve uma dependência afetiva por um amante jovem. Esse rapaz bem poderia ser mais um dos Meninos da Vida, de seu primeiro romance, mas Pasolini faz questão de não criar idealizações diante das dificuldades. A vida dessas pessoas não é boa nem bonita, não é fácil viver num ambiente de pobreza e violência, sob o julgamento moral de todos.Esse tipo de apreciação, aliás, é desafiado o tempo todo por suas obras e por sua própria postura de vida. As criações de Pasolini recendem a liberdade, ainda que ela seja penosa de ser desfrutada. Seus personagens não são submissos e têm tesão, muito tesão, o que os coloca diante de desafios e dissabores, mas também lhes dá momentos de enorme prazer e satisfação. Eles não estão ali para atender convenções sociais ou se submeter ao pudor dos outros. Isso ficará mais claro no decorrer de sua carreira, sobretudo nos filmes derradeiros, nos quais a ousadia de Pasolini grita o quanto ele poderia ser anárquico.Mas antes dessa fase mais libertária – e até libertina –, ele imprimiu sua leitura a outras temáticas, algumas bem delicadas em uma Itália eminentemente católica. O Evangelho Segundo São Mateus, de 1966, é uma visão do texto bíblico que causou controvérsia. O diretor enfatiza que Jesus foi perseguido exatamente porque desafiou poderosos na defesa dos desprezados. Forma de denunciar que a intolerância de há 2 mil anos continuava presente, fazendo vítimas. O tema havia sido abordado por ele antes, no curta A Ricota, de 1963, que tem Orson Welles vivendo um diretor que filma uma versão da Paixão de Cristo.O universo sexual de PasoliniEm 1964, Pier Paolo Pasolini lançou uma espécie de documentário, no melhor estilo “O Povo Fala”, em que indagava os italianos que encontrava nas ruas sobre o que pensavam a respeito de sexo, casamento, prostituição e as normas morais que regiam uma sociedade submetida a princípios católicos arraigados e opressores. Este talvez tenha sido o trabalho que indica rumos cruciais para seu cinema nos últimos anos. O diretor era inquieto e já se notabilizava por ser uma voz poderosa contra hipocrisias, provocando os moralistas com filmes que, no decorrer do tempo, ignoravam todos os limites que tentavam lhe impor.Essa tendência fica mais clara em Teorema, um de seus filmes mais celebrados e cujo enredo costuma ser imitado – na maioria das vezes, de forma lamentável – sobre um misterioso visitante que aparece sabe-se Deus de onde e passa a seduzir todos os integrantes de uma família. Pasolini coloca esse indivíduo bagunçando as convenções de um núcleo burguês de Milão, cujos membros se entregam à luxúria de suas fantasias represadas e depois que o homem vai embora, percebem que não podem mais viver na mesma arquitetura doméstica de antes. O que a sociedade pensa? Ela que se dane!Teorema é de 1968 e vai abrir os loucos anos 1970 da vida de Pasolini, infelizmente uma década que ele só viveria até a metade. Os cinco anos seguintes, porém, foram intensos, a começar por Decameron, de 1971, em que os nove contos da obra medieval de Giovanni Boccaccio, passada durante as pestes que varriam a Europa, ganham uma adaptação à altura. Amante da literatura, Pasolini sabia que poucos clássicos poderiam lhe oferecer mais elementos para dar vazão aos desejos íntimos das pessoas do que esta. O resultado é um filme que foi aclamado no Festival de Berlim, ganhando o Urso de Prata do júri.Não se tratava de uma fórmula e sim de uma visão de mundo, que Pasolini voltou a revelar nos seus trabalhos finais. Quatro contos eróticos de outro clássico do fim da Idade Média, Os Contos de Canterbury, de Chaucer, foram levados ao cinema pelo diretor em 1972. Com o trabalho, ganhou mais um Festival de Berlim. Em seguida, em 1974, veio mais uma adaptação na mesma direção, agora das Mil e Uma Noites. Desta vez a premiação foi a Palma de Ouro, em Cannes. Pasolini ganhou os três grandes festivais europeus, faturando o Festival de Veneza duas vezes com Mamma Roma e O Evangelho Segundo São Mateus.O trabalho que coroou esta sua vertente de contestação sexual, porém, é de 1975, ano em que morreria. Em Saló ou os 120 Dias de Sodoma, Pasolini solta todas as rédeas e mergulha, de maneira intensa e destemida, no universo sangrento e pervertido do Marquês de Sade. É um dos filmes mais ousados já realizados, influenciando gerações de cineastas e chocando plateias de todo o mundo. Em vários países, sua exibição foi proibida. Sadismo, estupros, tortura, ele faz com que as situações dos livros de Sade sejam atualizadas para um século 20 extremamente violento, que atenta contra a dignidade humana o tempo todo.Se Saló incomodou tanto, isso se deu não só pelas cenas explícitas de pessoas em martírio, mas pela certeza de que os horrores exibidos na tela integram também a realidade e não apenas a imaginação de autores e diretores chamados de doentios. A maldade em seu estado bruto, vandalizando outros seres humanos, é uma constante social e em vários momentos, como nos regimes autoritários que o século passado testemunhou – fascismo, nazismo, stalinismo –, é política de Estado, autorizada institucionalmente. Pasolini mostrava que a submissão do mais fraco ao mais forte era uma questão de oportunidade.Dizer que Pasolini foi pornográfico neste e em outros de seus trabalhos é não entender a verdadeira dimensão de sua arte. Tal avaliação é mera simplificação, talvez uma espécie de fuga de situações que não se restringem à ficção. Essa selvageria latente está ligada ao prazer – até mesmo erótico –, algo que Sade, em seus escritos, também apontava e dos quais diretor italiano foi a voz mais competente em levar para o em cinema. As agressões físicas e simbólicas quanto à sexualidade, ao livre pensamento, à subjetividade estão nos livros de Sade e nos filmes de Pasolini. Eles pagaram preços altos por tal audácia.Um cineasta políticoSexualidade e política não estão apartadas. Pasolini pensava assim e unia as duas dimensões sempre que podia. Pertencente a uma geração de pensadores que tinham nesse debate uma de suas prioridades – autores contemporâneos seus, como o francês Michel Foucault, também mexiam nesse vespeiro –, ele criou alegorias e metáforas para salientar essas ligações e, com isso, contestar até mesmo o papel dos intelectuais em um mundo em ebulição. É assim no filme Gaviões e Passarinhos, de 1966, em que pai e filho se encontram com um corvo e os três juntos vão refletir sobre o que é o socialismo.Pasolini era uma voz constante e ruidosa contra ideologias autoritárias de direita, mas isso não quer dizer que deixava de incomodar certas linhas de pensamento à esquerda, mesmo sendo um marxista que tinha como principais alvos de seus petardos os grupos fascistas e os democratas cristãos. O filme Pocilga, de 1969, é um ponto alto neste sentido, em que envereda por um surrealismo que causa estranhamento, colocando lado a lado duas lógicas separadas pelo tempo, mas unidas pelo absurdo. No passado, um jovem canibal; no presente, uma sociedade que apodrece entre discursos radicais e arranjos vergonhosos.Essa insatisfação com regras que traziam tantos malefícios está expressa nos textos que Pasolini nunca deixou de escrever na imprensa italiana. Era uma voz notória e regular no debate público de seu País. Parte dessas ideias está reunida no último livro que lançou em vida, Escritos Corsários, publicado no Brasil pela Editora 34. Obra apresentada em 1975, ano de sua morte, nela Pasolini pede ajuda ao leitor para que ajude a emprestar sentido a textos esparsos, mas que mostram seus interesses múltiplos, que vão dos hippies aos slogans de campanhas eleitorais. No radar do cineasta, tudo era captado.Uma morte trágicaNo dia 2 de novembro de 1975, Pier Paolo Pasolini fez o trajeto não muito longo entre Roma e o balneário litorâneo de Ostia, a praia mais famosa dos arredores da capital. Aquele lugar de mar belo e que tem suas areias tomadas por multidões durante o verão havia sido, em 1970, cenário de um filme seu, parceria com Sergio Citti, e que levava o nome do lugar. Pois foi ali, destino que Pasolini tanto amava, que ele conheceu seu fim. Em circunstâncias até hoje consideradas suspeitas, seu corpo foi encontrado num campo de futebol, com graves marcas de violência. O intelectual havia sido brutalmente assassinado.Um garoto de programa, que Pasolini teria pego com seu carro na zona de prostituição próxima à principal estação de trens de Roma, o Termini, foi preso em flagrante naquela madrugada. Pino Pelosi, que morreu de câncer em 2017, tinha 17 anos na época e confessou o homicídio. Ele, que dirigia o Alfa Romeo de Pasolini numa avenida de Ostia no momento em que foi abordado por uma patrulha e indicou onde estava o cadáver, disse que o cliente tentara estuprá-lo e que se defendera, assassinando-o. Essa versão foi levada aos tribunais por ausência de evidências fortes o suficiente para indicar outras motivações.A sexualidade de Pasolini não era um segredo e o fato de ele se relacionar com garotos de programa não era algo oculto. Exatamente por isso, houve teorias de que, cientes de suas preferências, seus inimigos fascistas teriam simulado um crime dessa natureza, tendo em Pelosi um testa-de-ferro para eliminá-lo. O nível de violência empregado levou legistas a atestarem que mais de uma pessoa havia participado do assassinato. Ninguém, porém, foi apontado como cúmplice de Pelosi. Uma cinebiografia chamada Pasolini, estrelada por William Dafoe e dirigida por Abel Ferrara, lançada em 2014, conta esse fim trágico.