A morte da vereadora ainda cercada de mistério e sem as devidas respostas. O líder religioso que cai em desgraça depois que seus crimes são descobertos. O veterano naturalista que sai em novas aventuras e tudo é mostrado, em imagens de alta definição. Possíveis profecias de Chico Xavier sobre a evolução da espiritualidade humana. As biografias do folclórico sambista, da estrela do rock morta precocemente, do humorista que marcou sua época, do esportista que virou lenda. Tudo isso pode ser visto à hora que se queira nas plataformas que se tornaram mais vigorosas em tempos de pandemia e maior isolamento social: o streaming.Mas todas as temáticas listadas acima têm algo em comum: são tratadas em documentários, nacionais e estrangeiros, disponíveis nos mais diferentes players deste novo mercado, que está em alta. De acordo com uma pesquisa da divisão de mídia da Nielsen Brasil, 43,9% dos entrevistados afirmaram que assistiram um filme ou série no streaming pelo menos uma vez por semana em 2020. Já os números do Kantar Ibope sobre o ano passado, os conteúdos de vídeo on-line (contando as plataformas de streaming e sites de acesso livre, como o YouTube) responderam por 13,1% da audiência em TV, num empate técnico com a TV a cabo (13,9%).Nesse cenário de novos hábitos de consumo, coloca-se em perspectiva quais os espaços que determinados produtos estão conquistando ou podem vir a ocupar. Os documentários, que integram as opções das principais plataformas de streaming brasileiras e internacionais, estão entre as atrações que chamam a atenção. Com caráter mais cinematográfico ou jornalístico, os documentários parecem mais próximos de nós, mas essa maior visibilidade esconde processos mais complexos, que passam por sinergias entre produção, distribuição e exibição e que dialogam com a profunda crise em que o cinema tradicional mergulhou no ano passado.“É interessante como os modos de consumo de produtos audiovisuais, ao se transformarem, produzem uma impressão sobre os gêneros, trazendo alguns mais à superfície do hábito das massas. Talvez isso esteja acontecendo com o documentário”, analisa a diretora e produtora Marcela Borela. Pesquisadora e professora da área, ela lança um olhar sobre esse mercado. “Se no modelo antigo os grandes orçamentos não estavam à disposição dos documentários na dobra einha produção e distribuição das majors de Hollywood, agora o acúmulo de mercados no modelo Netflix reforça uma concentração onde produtor, distribuidor, exibidor são um só.”Caminho próprio“As produções cinematográficas e televisivas de alto orçamento e com grandes equipes se viram obrigadas a suspender suas atividades por conta da pandemia, ao menos em algum momento desde o princípio do contágio. O documentário, por sua vez, encontrou seu caminho para contornar as dificuldades e garantir ao público narrativas que explorassem os dilemas que temos vivido”, opina o diretor e professor Rafael de Almeida. “O streaming se tornou o canal privilegiado para o escoamento da produção desses documentários”, acrescenta. Um caminho que pode ser compreendido a partir do que tais produtos têm oferecido.“Se de um lado existe por parte do público um desejo de compreender o tempo presente por uma perspectiva mais reflexiva, por outro há documentaristas interessados em revelar seus pontos de vista sobre o fenômeno de saúde pública que impacta o mundo todo, a partir de diferentes perspectivas”, afirma Rafael. “Embora a sala de cinema esteja em decadência como ponto final de quaisquer filmes e ela era um horizonte mais difícil para o documentário, a internet, o streaming, a TV são campos que facilitam o acesso ao documentário. O orçamento publicitário de lançamento dos filmes, se você comparar, entre ficções e documentários, será semelhante”, pondera a documentarista Marcela Borela.Ela, que acaba de lançar seu mais novo trabalho - o filme O Sonho que Atravessou o Buraco, lançado no site do Instituto Moreira Salles a convite do cineasta Kléber Mendonça Filho (Aquarius e Bacurau), em que fala de sua relação com o cinema -, sabe como funciona esse circuito e as mudanças pelas quais vem passando. “O meu documentário Taego Ãwa está disponível no Net Now (canal de streaming da operadora Claro). Ele foi pra sala de cinema e depois pro Net Now, que era como acontecia antes da pandemia. Havia esse espaço para a sala de cinema na exibição até pelo ineditismo e da cultura de ir lá e assistir o filme presencialmente.”Lógicas de consumoO crítico de cinema e professor Lisandro Nogueira percebe essas transformações de lógicas de consumo, mas não vê que o espaço do documentário tenha se ampliado por conta disso. “O problema é que não temos dados para fazer essa verificação”, argumenta. “Nem antes da pandemia tínhamos essas informações. As plataformas não divulgam esses balanços. A questão é que as plataformas de streaming têm se especializado muito. E qual a importância dos documentários nessas plataformas? Na minha opinião, muito pouca. Netflix, Amazon Prime, por exemplo, oferecem poucos documentários em relação a seus catálogos.”No caso da GloboPlay, pertencente à maior empresa de mídia da América Latina, há um acréscimo natural de produções jornalísticas importadas de seus canais noticiosos. “Mas documentário é uma coisa, telejornalismo é outra”, alerta Lisandro. “As pessoas estão mais interessadas em conteúdos jornalísticos, mas isso não necessariamente se reflete na busca por documentários.” Marcela Borela reforça: “Há um documentário de origem jornalística mais disponível que dá um caldo ao debate público. Não concordo, porém, que o documentário tem uma gênese jornalística. Há uma apropriação inteligente que a TV fez do documentário.”Ela lembra que o primeiro documentário é Nanook, O Esquimó, de 1922, dirigido por Robert Flaherty, que assim foi definido por John Grierson, o homem que montou a poderosa máquina de produções do gênero que se tornou a BBC, de Londres, nos anos 1920. “Ele criou o departamento de documentários educativos e os fez chegar a toda a Inglaterra com a força de política de Estado. A BBC traz um modelo de TV estatal baseado nessas produções. Isso eleva o documentário a esse lugar único e vai desenvolvendo, junto com o jornalismo, a televisão.” A BBC, ainda hoje, é uma das líderes do gênero. E sim, suas produções já estão no streaming.Mais tecnologia, menos fomento“Do ponto de vista do acesso às tecnologias digitais de produção, poderíamos dizer que é mais fácil produzir um documentário hoje do que alguns anos atrás”, afirma o cineasta e professor Rafael de Almeida. No ano passado, ele levou um de seus trabalhos, o curta-metragem Wide Awake, ao Lausanne Underground Film & Music Festival, na Suíça. “O uso de câmeras digitais portáteis e dispositivos móveis, como os celulares, em filmes documentários já é relativamente comum”, destaca. “As câmeras estão muito mais acessíveis e baratas e também todas as ferramentas de edição, os softwares de som”, enumera a cineasta e professora Marcela Borela.A produção universitária em cursos como o de Cinema e Audiovisual, da Universidade Estadual de Goiás, onde Rafael leciona, e o bacharelado em Cinema e Audiovisual do Instituto Federal de Goiás, ajudaram a fomentar essa produção. Outros cursos, como os de Jornalismo da PUC Goiás e da UFG, têm encontrado meios de divulgação dos documentários que produzem em festivais e canais universitários, como a TV UFG e a PUC TV, que exibem esses trabalhos. “Os festivais de cinema e cursos universitários sediados em Goiás têm um impacto muito positivo na profissionalização do audiovisual no Estado”, diz Rafael.“No entanto, apesar da possibilidade de realizar com menos recursos, as políticas públicas para o fomento da produção audiovisual sofreram retrocessos históricos que impedem as produtoras independentes de realizar seu trabalho e sobreviver de seus próprios projetos”, ressalva ele. “O que estimulou a produção de documentários em Goiás, além dos festivais e dos cursos de cinema, foram as políticas públicas de fomento”, concorda Marcela. “Se fizermos uma triagem dos filmes desses festivais, do trabalho feito nessas escolas, perceberemos que a grande maioria são resultados diretos da política de regionalização da produção audiovisual.”Ainda segundo ela, essa descentralização de recursos promoveu um salto na produção audiovisual goiana, incluindo os documentários. “Somos uma geração que se viabilizou por conta da regionalização. Assim, foram sendo estimulados programas, editais, possibilidades de fomento, produção de filmes que abasteceram esse circuito de festivais e possibilitaram a produção dos próprios cursos universitários. Os egressos e os estudantes começam a exibir, trabalhar com seus filmes, a entender esses processos a partir desses circuitos. O Fica não é o único, mas é o primeiro festival e tem toda a sua importância”, destaca.“Vivemos hoje um grande paradoxo, porque embora boa parte da população consuma produtos culturais por meio da internet, o setor cultural é um dos mais impactados negativamente pelas reformas em curso dos atuais governos, em todas as esferas”, critica Rafael. “Existe um certo delírio de que esses grandes players do mercado do streaming vão substituir as políticas públicas”, salienta Marcela. “Estávamos fazendo cinema, com as leis de incentivo, como a Lei do Audiovisual, que permitia o mecenato e que facilitava o investimento de empresas estrangeiras. Isso sem falar no Fundo Setorial do Audiovisual, o FSA”, lamenta.“Duas décadas de trabalho, muitas gerações de produtores, distribuidores e exibidores que estão vivenciando agora esse momento de negacionismo do que é público no Brasil. Isso é muito negativo para a produção, sobretudo de documentários, que são filmes com orçamentos menores e que no mercado, não vão dialogar tanto com as bilheterias”, complementa Marcela. “O desmonte das políticas públicas é ruim porque a gente já teve linhas de fomento para os documentários. Eu fui uma das realizadoras do programa DocTV, um projeto nacional que abastecia as redes de TV públicas. Eram 60 filmes produzidos em todo o território nacional.”-Imagem (Image_1.2178095)-Imagem (Image_1.2178096)