Com as redes sociais, a cultura do “cancelamento” está ON, a todo vapor. Nenhum passo em falso é perdoado, todo deslize é enfatizado e condenado e a punição a quem o cometeu vem rapidamente. A imagem pública do indivíduo pode mudar drasticamente em questão de dias, até de horas. A decepção é seguida de boicote e, por fim, de perseguição, mesmo que o alvo já não esteja entre nós. Isso tem acontecido com mais frequência com escritores consagrados, que têm seus pecados do passado relembrados, o que não tira o brilho de suas obras, mas traz um gosto amargo aos leitores que os admiram (ou admiravam).O caso reacendido recentemente é o do poeta chileno Pablo Neruda, Nobel de Literatura de 1971 e um monumento das letras sul-americanas do século 20. Ainda em 2018, a proposta de dar o nome do autor ao Aeroporto Internacional de Santiago foi refutada por movimentos feministas, que lembraram o passado nada elogiável do autor de Canto Geral. O homem que morreu como um símbolo contra a então recém-instaurada ditadura de Augusto Pinochet, que havia derrubado poucos dias antes o regime do socialista Salvador Allende – amigo próximo de Neruda –, teve sua imagem maculada pelo que escreveu.No volume de memórias Confesso que Vivi, publicado em 1974, um ano após a morte do autor, Neruda expõe seus piores pecados. E alguns deles eram terríveis. No período que morou no Ceilão, atual Sri Lanka, ele viveu um episódio com uma mulher que pertencia à chamada “casta dos intocáveis”, os tamil. A descrição da cena é a de um estupro, uma vez que a mulher é segurada pelo pulso por Neruda, denotando uma relação forçada. Além disso, o autor também admite que desprezava sua única filha, Malva Marina, que nasceu com hidrocefalia. Ele a abandonou, tentou escondê-la e se referia a ela como uma aberração.Todos esses fatos são conhecidos há quase 50 anos, mas as reações, iniciadas em 2018, ganharam outra dimensão agora. Os museus instalados nas casas onde Neruda morou, em Santiago, Valparaíso e na Isla Negra, no litoral chileno, nunca tiveram tão poucos visitantes. Antes pontos obrigatórios para quem fazia turismo no país, os museus pediram ajuda ao novo governo chileno para pagar as contas. Calcula-se que a quantidade de visitantes após é de apenas de 15% do que era antes das polêmicas e da pandemia. Daí vem a pergunta: é possível continuar a admirar a obra de alguém que, sabe-se, teve atitudes desprezíveis?A separação entre vida e obra é um debate antigo na literatura. Há quem pregue que essa associação é indevida e que os trabalhos literários têm trajetórias próprias, sem que os atos de autores e autoras contaminem a apreensão de seus livros. Há quem, por outro lado, investigue rastros biográficos em cada linha, em cada verso. No caso de Neruda, alguns poemas já foram apontados como sinais de seu pretenso desprezo pelas mulheres, o que costuma ser enxergado em outros gigantes da literatura. Alguns deles não fazem muita questão de esconder seus pecados e até os transformam em parte de sua mística.Nesse grupo está o poeta Charles Bukowski. Sua obra é encharcada de pessimismo e decadência, com amplas referências ao alcoolismo. Ele tinha lugar de fala, pois era um exímio consumidor de bebidas alcoólicas e muitas vezes foi registrado completamente embriagado. Para completar, o machismo atávico integrava essa personalidade bastante conturbada. Ficou famosa a cena deprimente de Bukowski agredindo fisicamente sua segunda esposa, Linda Lee, durante uma entrevista para a TV italiana. Politicamente incorreto, o autor continua a ser celebrado por sua literatura original, franca e crua.Outro machista notório era o norte-americano Ernest Hemingway, que também gostava de mostrar sua masculinidade fazendo referências claramente homofóbicas. Pescarias, caçadas, bebidas, guerras, tudo na obra do autor exala um imaginário viril, algo que ele fazia questão de demonstrar em sua vida íntima e na relação com amigos. Hemingway, por exemplo, tinha sérias restrições a Scott Fitzgerald por considerá-lo fraco, sensível demais e dominado pela esposa, Zelda. Essas opiniões são expressas em um clássico, Paris É uma Festa. Tudo, porém, em uma prosa que está entre as mais inspiradas de sua geração.No Brasil, polêmicas do tipo também já foram debatidas em torno de autores que estão entre os mais importantes do País. Euclides da Cunha, no clássico Os Sertões, não esconde passagens em que se revela um adepto da eugenia, uma pseudociência em voga no final do século 19 e início do 20, que pregava uma espécie de hierarquia entre raças e etnias humanas. Esse ideário perverso e racista foi um dos suportes para a criação de ideologias, como o nazismo. No caso de Euclides, havia desprezo quanto aos nordestinos e menções pejorativas ao que chamava de “mestiços”.Monteiro Lobato, também um homem da transição dos séculos, incorre no mesmo erro em obras que foram fundamentais para a criação da literatura infantojuvenil no Brasil. Em livros do ciclo do Sítio do Pica-Pau Amarelo, ele expõe visões racistas e faz descrições terríveis dos personagens negros. Em textos ensaísticos, ele reafirma tais posições. Ambos devem ser vistos em seus contextos históricos e estudiosos pregam que suas obras não sejam “canceladas”, mas explicadas com olhar crítico. Aos leitores cabe o esforço de manter a admiração a livros tão relevantes, mesmo tendo motivos para não perdoar seus autores.Polêmicas políticasDefender ditaduras, fazer campanhas para extremistas, apoiar regimes autoritários ou genocidas. Escritores famosos, que já morreram ou que ainda estão em atividade, têm cometido esses erros ao longo da história, servindo, muitas vezes, como armas de propaganda para líderes que devem ser vistos com desconfiança e até repulsa. Uma das personalidades literárias envolvidas em tais controvérsias foi Jorge Luis Borges, o mais importante autor argentino e uma referência global quando o assunto é ousadia narrativa. Ele teve uma relação errática com a ditadura militar de seu país instalada nos anos 1970.Em uma sequência de postagens no Twitter, o escritor e pesquisador mexicano Federico Guzmán Rubio contou como Borges apoiou, num primeiro momento, o ditador Rafael Videla, responsável pela morte e desaparecimento de milhares de opositores. O autor de clássicos como O Aleph era anticomunista ferrenho e adepto do militarismo. Isso fez com que criasse simpatia por um governo militar de direita, mas essa postura mudou quando ouviu o depoimento de duas mães de desaparecidos. Ele voltou-se contra a ditadura, assinou manifestos criticando-a e até acompanhou o julgamento de Videla.Há autores, porém, que permaneceram com seu apoio a regimes ditatoriais até o fim de suas vidas. Foi o caso de outro nome maiúsculo das letras latino-americanas e muito popular no Brasil, o colombiano Gabriel García Márquez. Sua amizade com o cubano Fidel Castro era famosa e Gabo, como era chamado, passava longas temporadas em Havana para escrever seus livros. O escritor chegou a interceder em favor de amigos junto a Fidel, conseguindo livrar alguns, vendo outros serem fuzilados pelo regime, e até serviu de intermediário entre Castro e Bill Clinton, então presidente dos EUA, em uma crise migratória.García Márquez foi duramente criticado por muitos anos em razão dessa amizade, que incluía o envio de manuscritos de seus livros ao ditador para colher sua opinião. Mais que isso, Fidel chegava a fazer revisões e sugeria informações mais específicas, como em Amor nos Tempos do Cólera, no qual conhecimentos náuticos de Fidel foram incorporados ao texto. Foi uma escolha que Gabo fez e que lhe valeu alguns rompimentos. Um deles foi com Mario Vargas Llosa, outro Nobel de Literatura, se bem que a inimizade entre eles tenha sido mais definida por conta de uma história privada até hoje não bem esclarecida.Fofocas à parte, Llosa jamais poupou García Márquez por apoiar um ditador como Fidel. Mas o próprio escritor peruano vem sendo posto na berlinda por suas posições políticas, causando decepção em parte de seus leitores.Autor de livros que fustigaram autocratas – como A Festa do Bode, sobre o ditador Trujillo, da República Dominicana, e Conversa na Catedral, emblema da resistência ao arbítrio –, Llosa tem surpreendido ao dar apoio a candidatos de extrema-direita em eleições recentes, como no Peru e Chile. Ele sempre foi um intelectual do liberalismo de direita, mas agora parece estar ficando mais radical. Tanto que esta semana deu mais uma declaração polêmica que diz respeito ao Brasil: “As palhaçadas de Bolsonaro são muito difíceis de admitir para um liberal. Agora, entre Bolsonaro e Lula, eu prefiro Bolsonaro”. A afirmação reforça seu cancelamento pela esquerda.José Saramago, outro Nobel de Literatura, militou nas fileiras do Partido Comunista Português por um bom tempo, mas abdicou dessa posição na parte final de sua vida. Em 2007, ele chegou a declarar: “Antes gostávamos de dizer que a direita era estúpida, mas hoje em dia eu não conheço nada mais estúpido que a esquerda”. Um desalento que também alcançou outros autores do mesmo campo ideológico, como o brasileiro Jorge Amado, que chegou a ser eleito deputado nos anos 1940 pelo Partido Comunista Brasileiro, mas que se decepcionou ao descobrir os crimes do regime soviético de Josef Stálin.Outros escritores tiveram uma relação tumultuada com o socialismo. Em 1960, o casal de filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir viajaram a Cuba para conhecer os jovens guerrilheiros barbudos que haviam derrubado uma ditadura. Comunistas históricos, eles tornaram-se uma espécie de embaixadores da Revolução Cubana por mais de uma década, até que, em 1971, a prisão do poeta Heberto Padilla revoltou os intelectuais franceses. Fidel Castro não perdoou a crítica e acusou os ex-amigos de serem agentes infiltrados que buscavam desestabilizar e difamar seu regime. Era o ditador em ação.As posições sobre como o comunismo deveria agir causou a ruptura entre Sartre e um amigo próximo de então, o também escritor Albert Camus. Quando Camus publicou O Homem Revoltado, quem se revoltou foi Sartre, que iniciou uma polêmica pública ao abrir espaço em sua revista, Les Temps Modernes, para um artigo que desancava o amigo. Camus respondeu no mesmo tom duro e Sartre tomou as dores. Nessa briga, não faltaram palavras “odiosas e detestáveis”, como declarou em uma entrevista o escritor Ronald Aronson, que publicou o livro Camus e Sartre, que trata do embate.Difícil imaginar algo mais odioso e detestável que os regimes nazifascistas que engolfaram o mundo na maior tragédia do século 20 e produziram o Holocausto judeu. Infelizmente, um dos maiores filósofos do último século, o alemão Martin Heidegger, autor de obras basilares do pensamento ocidental, como Ser e Tempo, é visto como um apoiador do regime de Adolf Hitler. Estudos mais recentes contestam a versão da adesão ao nazismo, mas há registros de declarações elogiosas do intelectual ao líder fanático e ele, ao invés de fugir do país, como tantos de seus colegas, ficou e foi nomeado reitor de uma universidade.Os famosos Cadernos Pretos do filósofo, com anotações daquela época e cujo conteúdo vem sendo publicado, mostram dubiedade, refutando teorias raciais nazistas, mas não ocultando algum antissemitismo. Ele também se calou sobre a descoberta do Holocausto. Na mesma época, o escritor francês Louis-Ferdinand Céline, dono de grande talento, também o usava para escrever panfletos contra os judeus e de louvação a ideias nazistas, mesmo com a França ocupada por Hitler. Já o italiano Luigi Pirandello apoiou a ascensão de Mussolini ao poder em 1922, mas morreu antes de ver o resultado daquele movimento. Seriam eles “canceláveis”?Um time de peso da literatura e da filosofia têm passagens para lá de comprometedoras em suas biografias. Seria possível deixar de lê-los por conta desses fatos?José de Alencar – O autor de Iracema e O Guarani exerceu o cargo de senador e na política mostrou-se adepto da escravidão no século 19. Escreveu cartas condenando a abolição.Louis Althusser – Um dos principais pensadores marxistas do século 20 acabou seus dias recolhido em uma instituição depois de ter matado a própria esposa num surto psicótico.Victor Hugo – Autor de clássicos como Os Miseráveis e O Corcunda de Notre-Dame, o francês era um notório assediador. Vítimas preferenciais: as empregadas de sua casa.Agatha Christie – Seu livro mais popular, O Caso dos Dez Negrinhos, é alvo de acusações de racismo já em seu título, que em inglês é Ten Little Niggers, uma expressão pejorativa.Truman Capote – Com A Sangue Frio, ele entrou para o Olimpo do Jornalismo Literário, mas seus contos, inspirados em conhecidos, expunham segredos e intimidades alheias.Michel Houellebecq – O polêmico escritor francês já foi julgado por racismo e admite que tem islamofobia, visível em livros como Submissão, no qual os muçulmanos tomam o poder.Yukio Mishima – Astro da literatura japonesa, ele formou uma milícia radical, tentou dar um golpe de Estado e cometeu suicídio ritual, cuidando para que todo o país o testemunhasse.Lewis Caroll – Sobre o autor de Alice no País das Maravilhas pesa a suspeita de pedofilia, com a hipótese de que teria uma paixão pela menina que inspirou sua personagem.-Imagem (Image_1.2455978)-Imagem (Image_1.2455972)-Imagem (Image_1.2455973)-Imagem (Image_1.2455974)