Às vésperas da virada do ano, a dupla sertaneja Zé Neto e Cristiano emitiu um comunicado à imprensa avisando que estavam desmarcando toda a agenda de shows até o próximo dia 9. Alguns dias antes, no dia 22 de dezembro, o cantor Zé Neto usou suas redes sociais para comunicar os fãs sobre o problema de saúde que estava enfrentando e que culminou na suspensão de suas atividades. “Está tudo bem e realmente passei por problema sério no pulmão devido ao cigarro eletrônico”, contou, alertando quem faz o uso do dispositivo: “Para porque faz mal”.O cantor, que ainda está afastado de suas atividades, foi diagnosticado com monilíase oral, infecção causada por um fungo em função do uso de corticoide para tratar focos de vidro no pulmão. O quadro pode ter sido por consequência da Covid-19, que Zé Neto contraiu em junho de 2020, ou pelo uso do cigarro eletrônico, causando falta de ar ao cantar. Desde que veio a público alertando sobre o seu caso, o cantor retomou uma discussão que vem sendo reiterada principalmente desde que se tornou febre entre os jovens: os riscos do uso dos Dispositivos Eletrônicos para Fumar, nome técnico dado para os cigarros eletrônicos.O cigarro eletrônico surgiu com a promessa de ser menos prejudicial em comparação ao cigarro comum. É um dispositivo que possui diversos formatos, como o de caneta, imitando um cigarro comum ou retangulares, que alguns comparam ao formato de um pen drive. É também encontrado com o nome de vape e já tem versões descartáveis sendo vendidas, chamadas de pods. Esses dispositivos têm venda proibida pela Anvisa no Brasil desde 2009. “O dispositivo tem um depósito onde é colocado um líquido concentrado de nicotina, que é aquecido e inalado pela pessoa. Esse líquido possui, além da nicotina, um produto solvente e um químico de sabor, que são prejudiciais. Estudos estão em andamento para avaliar a relação com câncer de pulmão”, diz o oncologista torácico Carlos Gil Ferreira.Assim como cigarros convencionais, o cigarro eletrônico também contém tabaco e, portanto, nicotina, principal substância ligada ao tabagismo. “Lembrando que o tabagismo é o principal causador de câncer de pulmão, uma das doenças que mais mata no mundo”, alerta. Há ainda, o risco de agentes inflamatórios, que tem a ver com o fato da temperatura da fumaça ser muito elevada inflamar a cavidade oral. O caso do cantor Zé Neto é também chamado de “vidro fosco no pulmão”, condição relacionada a lesões inflamatórias no pulmão sem muita especificidade.Há, ainda, uma doença pulmonar relacionada ao uso do dispositivo que recentemente ganhou o nome Evali, no ano de 2019. Trata-se de uma sigla em inglês para a lesão pulmonar associada ao uso de produtos de cigarro eletrônico ou vaping.“A Evali leva a uma grave doença pulmonar com alto índice de óbitos e ocorre, quase sempre, em usuários de cigarros eletrônicos. Mesmo que nem todas as 4700 substâncias nocivas ao nosso organismo que existem no cigarro convencional estejam presentes nos eletrônicos, eles possuem outras substâncias que também prejudicam nossa saúde”, destaca a pneumologista Fernanda Miranda de Oliveira.Nas redesO cigarro eletrônico preocupa pais e tutores de jovens e crianças pela popularidade em contextos sociais, como nas festas e baladas. Há, ainda, outro viés que incentiva o consumo e que chama a atenção pelo alcance que possui: o ambiente digital. Sim, o popularmente chamado "vape" também é uma onda nas redes sociais. Para entender um pouco sobre como o dispositivo se tornou tendência na internet, basta uma breve análise das estatísticas de uma rede social como o TikTok, por exemplo, que possui público majoritariamente de jovens.No ano passado, a plataforma registrou mais de 1 bilhão de usuários. De acordo com dados levantados divulgados pela própria plataforma, 66% dos usuários do TikTok têm menos de 30 anos. O maior público da plataforma tem entre 10 e 19 anos, somando cerca de 32%. E ao pesquisar por hashtags populares na rede social, encontra-se a #vapechallenge, com mais de 73,9 milhões de vídeos publicados. Os challenges são uma espécie de desafios públicos, como o próprio nome em inglês sugere, e uma das marcas registradas da plataforma. Um exemplo é o das populares dancinhas com coreografias que surgem ali e que incentivam outros usuários a reproduzi-las em seus perfis.Acontece o mesmo no "vape challenge", traduzido livremente como "desafio do vape": os usuários são incentivados a se filmar fazendo brincadeiras com o cigarro eletrônico propostas por outros, que vão desde criar formas com a fumaça, até inalar a maior quantidade possível dela. Nos vídeos, as fumaças são coloridas e atrativas, bem como os próprios dispositivos eletrônicos. Com um desafio como esse em alta, quem ainda não possui o próprio cigarro eletrônico e quiser participar do desafio precisa adquirir o dispositivo primeiro. Como a própria plataforma divulga, o poder de novas compras no TikTok é imenso: 25% dos usuários buscam ou compram algum produto na internet imediatamente após vê-lo na rede social. A propaganda do dispositivo é gratuita, atrativa pelo tom de brincadeira e eficiente.É através das redes sociais que influenciadores consomem abertamente e até indicam fornecedores e modelos para os seguidores - alguns são nomeados "embaixadores" de marcas de cigarros eletrônicos, cujos perfis não param de crescer em redes sociais como o Instagram. Um deles, com loja em Goiânia, possui mais de 150 mil seguidores e publica vídeos satirizando famílias que alertam sobre os perigos do uso dos dispositivos, além de promover a venda ilegal dos cigarros eletrônicos.Porta para a dependênciaAlguns argumentos são repetidos ao tentar realizar a defesa dos cigarros eletrônicos, como o de que fazem menos mal que os tradicionais por não possuírem todas as substâncias tóxicas dos mesmos. Há, ainda, o argumento de que os dispositivos eletrônicos surgiram como uma forma de transição do cigarro tradicional, auxiliando aqueles que desejam largar o tabagismo aos poucos e, portanto, trazendo menor risco de vício em nicotina. As defesas têm em comum a tentativa de classificar os cigarros eletrônicos como mais inofensivos para a saúde do usuário.Um estudo do Instituto Nacional de Câncer (INCA) publicado no ano passado, no entanto, aponta para o perigo de um caminho inverso: o de que pessoas que usam dispositivos eletrônicos para fumar têm mais chances de iniciar o uso de cigarro convencional. Essa iniciação pode ser explicada justamente pela presença da nicotina nos cigarros eletrônicos, que podem levar à dependência e à procura de outros tipos de produtos de tabaco.Além disso, a movimentação de mão-boca, inalação e expiração são comportamentos comuns dos dois tipos de cigarros. "O problema é que o cigarro eletrônico contém nicotina, que é uma substância que desenvolve dependência. Uma vez que você passa a ficar dependente da nicotina, você pega qualquer produto do tabaco que estiver ao seu alcance", comenta a pneumologista Fernanda Miranda de Oliveira.O tabagismo é reconhecido como uma doença crônica causada pela dependência à nicotina que, além dos riscos ao organismo, causa a dependência emocional. "Existem diversas teorias sobre o consumo da nicotina ser determinado pelo alívio momentâneo de tensões internas, ao mesmo tempo que uma forma de obtenção rápida de prazer", comenta a psicóloga e psicanalista Anna Lopes Coelho.Ela comenta que o ciclo de utilizar a fonte de nicotina como forma de reduzir a ansiedade, o estresse e o desprazer torna o processo de abandono do vício ainda mais difícil e, por isso, a necessidade de um acompanhamento psicológico. "É necessário estimular na terapia a escuta e o acolhimento, para favorecer a expressão das angústias e compreender os significados que o cigarro porta na vida de cada sujeito", diz.RegulamentaçãoOs Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs) têm venda proibida pela Anvisa no Brasil desde 2009. No entanto, mesmo sem a devida regularização, a venda desses dispositivos segue crescendo no país e se tornou um dos principais focos de campanhas como o Dia Mundial sem Tabaco, do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Algumas medidas paralelas vêm sendo adotadas, como a lei que proíbe o uso de cigarros eletrônicos em ambientes públicos ou privados no Ceará, sancionada em novembro do ano passado.A Organização Mundial de Saúde (OMS) também faz um alerta, principalmente em relação aos jovens como público alvo: os fabricantes desses produtos querem, geralmente, atrair crianças e adolescentes com uma enorme variedade de aromas e sabores, além dos próprios dispositivos terem formatos divertidos e "descolados". A principal preocupação é de que a nicotina tem efeitos dramáticos no desenvolvimento do cérebro em menores de 20 anos, além da maior chance dessas crianças se tornarem fumantes na vida adulta.-Imagem (Image_1.2381504)