Uma coisa leva a outra. Esse ditado popular já tão surrado cabe perfeitamente quando se quer traçar as genealogias de movimentos culturais brasileiros no século 20. Muitas dessas linhas históricas desembocam num foco recorrente: a Semana de 22. O modernismo ali engendrado não desapareceu com um movimento que já nasceu fragmentado e cheio de brigas internas. Ele se expandiu para diferentes leituras, novas estéticas, diálogos que se ampliaram e transformaram ideias, criando outras. Na verdade, é o cerne da antropofagia, defendida na época, numa retroalimentação constante, numa deglutição ininterrupta.Algumas dessas repercussões podem ser medidas pelas formas como obras icônicas do modernismo se eternizaram em constantes releituras em diversas linguagens. O romance Macunaíma, de Mário de Andrade, por exemplo, tem essa potência. Livro lançado em 1928, ele traça o itinerário incrível do “herói sem caráter”, que nasce na Amazônia e vai para São Paulo. Personagem encharcado de referências indígenas e negras que fica branco ao chegar à metrópole, essa criação, encarnada por Grande Otelo no filme de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969, tornou-se um dos símbolos do cinema novo.Essa relação não é acidental. O cinema novo é, seguramente, o principal movimento da área que o Brasil produziu, com projeção mundial. Buscar uma das principais obras do modernismo era uma maneira de mostrar uma nação de forma mais profunda, ainda que alegórica e até satírica, demolindo as imagens idílicas de um indigenismo que subtraía a cultura original para submetê-la aos parâmetros europeus, como a observar uma hierarquia entre as diferentes referências. Mário de Andrade, um estudioso nato, foi meio antropólogo para criar em sua literatura um herói que se afasta de Peri e Iracema, brincando com eles.Essa marca distintiva, interessante e surpreendente foi uma fonte para o cinema novo, que também criava metáforas para abarcar uma terra em transe. Isso também aconteceu nos palcos, com a antológica montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, realizada em 1967 pelo Teatro Oficina, de São Paulo. Na leitura quase anárquica do diretor José Celso Martinez Corrêa, o retrato alegórico de um País que acabava de mergulhar na ditadura, mas que buscava no modernismo de quase 50 anos antes a inspiração para gritar por liberdade, colocando em xeque as relações capitalistas a partir de um autor que virou comunista.Oswald de Andrade, que em breve deve ganhar uma biografia escrita pelo jornalista Lira Neto, foi esse camaleão, que antes se dava bem com as elites econômicas e depois virou um homem da esquerda sob influência da militante Patrícia Galvão, a Pagu, ela também um nome expressivo de um segundo momento do modernismo. Militante na imprensa, pioneira do feminismo, artista e escritora, ela conviveu com o casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, mas acabou se casando com ele pouco tempo depois, provocando controvérsia e sendo um dos motivos para o rompimento entre alguns dos membros da Semana de 22.O Rei da Vela foi escrita em 1933, momento em que o modernismo brasileiro já entrava em sua segunda geração. Ainda que esteticamente não houvesse uma continuidade propriamente dita, as produções desse período se amparavam em uma busca do elemento nacional genuíno. Isso mudou os olhares, por exemplo, sobre o que se poderia considerar regionalismo. Saíram as histórias que traziam estereótipos e até certo nível de exotismo, como Inocência, de Visconde de Taunay, ou O Cabeleira, de Franklin Távora, e entravam em cena retratos mais realistas e profundos sobre realidades nacionais ignoradas.A chamada Geração de 30, na qual se destacam os autores nordestinos, é a grande novidade nesse cenário. Jorge Amado, com o ciclo do cacau, José Lins do Rêgo, com o ciclo da cana-de-açúcar, os romances da seca de Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos, depois do vanguardista A Bagaceira, de José Américo de Almeida (publicado em 1928), transformaram a literatura brasileira mais uma vez. Foi uma década de mudanças políticas – a revolução de 1930 colocou abaixo a República Velha – e fez o Brasil olhar ainda mais para seu interior, numa tendência que não mais nos abandonaria no restante do século.Na poesia, essa força modernista também se fez sentir para além de seus pioneiros. O nome que mais se destaca é o de Carlos Drummond de Andrade, que dedica seu primeiro livro, Alguma Poesia, ao modernista Mário de Andrade, de quem se tornou amigo e com quem trocou farta correspondência por duas décadas. O contato do poeta de Itabira com os principais representantes da Semana de 22 foi precoce, ainda em 1924, quando Drummond tinha apenas 22 anos de idade e se encontrou com Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, que visitavam Belo Horizonte na famosa “viagem pelo Brasil”.Drummond, porém, imprimiu sua marca a essa nova fase do modernismo, dialogando também com Manuel Bandeira, pertencente ao movimento original, e, alguns anos depois, sendo ele a inspiração para uma nova geração de poetas, entre os quais o pernambucano João Cabral de Melo Neto. Foi uma espécie de sucessão de gênios, que transformaram a poesia brasileira em vários sentidos. Desde os anos 1920, passando pela poesia concreta inaugurada nos anos 1950 – esta, também, em diálogo com as artes plásticas, a música e a arquitetura –, o Brasil viu sua produção criativa mudar e, vira e mexe, se referir a 1922.-Imagem (1.2401773)