Ela era apenas uma garotinha quando se arriscou a cantar a plenos pulmões músicas do repertório de Elis Regina ao vivo no Domingão do Faustão, da TV Globo. Foi o primeiro passo para emocionar o Brasil e ter certeza da carreira que seguiria. A cantora goiana Maíra Lemos nunca escondeu a enorme admiração que sente por Elis, cuja inesperada morte, aos 36 anos, completa nesta quarta-feira (19) quatro décadas. “Ela foi minha maior inspiração como artista. Era versátil, cantava com maestria e propriedade. E tudo, acompanhado de muita visceralidade. Além de tudo, era uma atriz no palco”, conta Maíra.Assim como milhares de fãs da artista gaúcha, Maíra sabe que, mesmo após tanto tempo desde de que saiu de cena, o legado de Elis permanece vivo. “Ela foi a cantora que mais lançou compositores, que depois, se tornaram ícones da música popular brasileira. Ela realmente fez a diferença no cenário musical brasileiro. Desde a primeira vez que a ouvi, me apaixonei, e olha que eu tinha apenas 5 anos. Chorava quando ouvia Atrás da Porta, já sentia uma emoção muito forte ao ouvi-la cantar aquela música”, explica.Entre os fãs e admiradores de Elis, a data lembrada nesta quarta-feira (19) está sendo chamada de “40 anos de saudade”. Em Goiânia, Elis fez um show histórico no Festival do Colégio Objetivo, no Estádio Serra Dourada, no fim dos anos 1970. Ao menos três grandes projetos foram pensados para reviver Elis Regina nos próximos meses. Imagens de programas de TV, shows e entrevistas que Elis concedeu para emissoras de vários países fazem parte de um documentário Elis por João que será lançado pela HBO e tem direção de Lea Van Steen. Imagens raras conseguidas pelo produtor Marcelo Braga mostram Elis Regina em aparições nas TVs da Bélgica, França, Portugal, México e Alemanha. A narração será de João Marcello Bôscoli, filho da cantora.Em fase de finalização, há também o documentário gravado pelo produtor Roberto de Oliveira durante os registros, em Los Angeles, nos Estados Unidos, do álbum Elis & Tom, lançado em 1974. Elis e Tom – Só Tinha de Ser com Você será lançado pelo canal Arte 1 ainda este ano. A cantora também será retratada em uma história em quadrinhos, desenvolvida pelo desenhista Gustavo Duarte, um dos mais conhecidos quadrinistas brasileiros, com trabalhos realizados para os estúdios internacionais Marvel e DC Comics. O livro de 80 páginas, uma fantasia biográfica, está previsto para o segundo semestre deste ano.Os 40 anos de ausência da cantora serão lembrados também pelo site do Itaú Cultural (www.itaucultural.org.br). O portal da instituição vai publicar nesta quarta-feira (19) um material especial, compartilhando com o público um amplo conteúdo sobre sua trajetória, assim como um mergulho nos caminhos que conduziram os jornalistas Danilo Casaletti e Renato Vieira ao projeto Elis, Essa Saudade, lançada em dezembro pela Warner Music Brasil. O projeto traz entre sucessos e versões alternativas a faixa Pequeno Exilado, gravada em dueto com Raul Ellwanger e fora de catálogo há 41 anos. A letra, como o próprio título indica, resvala em temas sensíveis relacionados aos anos de chumbo.“Pra mim, Elis Regina é uma grande intérprete. Daquelas raras, que se entrega à canção de tal forma, com tal força e coragem que a torna co-compositora”, define a cantora Cláudia Vieira. Elis Regina é, segundo Cláudia, uma artista de seu tempo e atemporal porque seu trabalho é marcado pela inovação de sonoridades e compositores. “Engajada política, cultural e artisticamente é um farol para todos nós, artistas. Ela faz muita falta à nossa música”, destaca a cantora. Elis deixou, entre suas obras, 27 LPs, 14 compactos simples e 6 duplos, que venderam mais de 4 milhões de cópias.Comoção nacional Na manhã do dia 19 de janeiro de 1982, a música popular perdia, prematuramente, uma de suas maiores intérpretes, que se identificou com o Brasil desde o início de sua carreira no Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro, passando pelos festivais que incendiaram os anos 1960, até a cantora madura dos shows dos anos 1970, como Falso Brilhante e Transversal do Tempo. Com apenas 36 anos, Elis Regina morreu no auge do sucesso. A manchete do POPULAR do dia seguinte à morte de Elis falava que a música brasileira estava de luto. Em Goiânia, houve corrida às lojas de discos em busca de álbuns da cantora, além de especiais em homenagem à ela nas rádios.“Sempre vou viver como camicase. É isso que me faz ficar de pé”, revelou em uma de suas declarações mais emblemáticas. Altas doses de cocaína, tranquilizantes e bebidas alcoólicas foram apontadas como causa da morte por overdose. “Calou-se a voz e o Brasil começou a chorar” foi a manchete do Jornal Nacional do dia. Emissoras de rádios e TV interromperam a programação normal para cobrir a tragédia. Na época, os filhos da cantora João Marcelo (de seu casamento com Ronaldo Bôscoli) e Pedro e Maria Rita (da união com César Camargo Mariano) tinham, respectivamente, apenas 12, 7 e 4 anos.Recentemente, Maria Rita fez um longo desabafo no Twitter sobre as comparações e os ataques que recebe desde o início de sua carreira musical. “Não a imito. Eu não lembro de minha mãe. Zero lembrança. Eu não cresci com YouTube. Não tinha documentários. Então não a imito”, disse. De maneira geral, os filhos têm tido papel fundamental em manter vivo o legado de Pimentinha, apelido dado a Elis por Vinicius de Moraes por causa do temperamento explosivo, ao longo dos anos.PerfilNascida numa família pobre em Porto Alegre, Elis lançou seu primeiro disco, Viva a Brotolândia, em 1961. Tinha apenas 16 anos. O sucesso veio mesmo em 1965, quando, ao lado de Jair Rodrigues, passou a apresentar o programa musical O Fino da Bossa, nos tempos áureos da TV Record, e virou estrela dos primeiros grandes festivais cantando Arrastão, de Edu Lobo. Não é exagero dizer que Elis ajudou a moldar a forma como as intérpretes passaram a ser encaradas na MPB.Para muitos teóricos, foi ela a responsável pelo País de cantoras que o Brasil se tornou. Há muito mais rainhas do que reis no cenário da música nacional. Além do talento como intérprete, ela sempre chamou a atenção pela postura libertária, feminista e foi voz importante na busca da democracia no Brasil.Quando morreu, cerca de 15 mil fãs acompanharam de perto o velório e enterro cantando músicas como Romaria e prestando suas últimas homenagens. O cortejo, em um caminhão do Corpo de Bombeiros, praticamente parou São Paulo. Qualidade vocal, presença de palco e personalidade colocaram Elis na história como uma das mais importantes cantoras e intérpretes brasileiras.