As 16 narrativas curtas de Desmoronamentos, obra que marca a estreia da pernambucana Micheliny Verunschk em um livro de contos, são ásperas, duras e trazem as mulheres como protagonistas. Autora do sucesso O Som do Rugido da Onça, Micheliny, com esse livro, dá prosseguimento à parceria com o selo goiano Martelo, que ela chama de “preciosa”. Já são três títulos publicados pela editora goiana – os outros dois foram Maravilhas Banais e O Movimento dos Pássaros – este com presença em premiações nacionais, como o Jabuti e o Prêmio da Biblioteca Nacional. Nesta entrevista exclusiva a O POPULAR, ela fala da gênese desse trabalho em prosa que, admite, “não é suave”. Segundo Micheliny, vivemos um constante “campo de batalha” e as mulheres parecem sempre estar com “o pescoço pronto para ser sangrado”, já que tudo parece instável, na iminência de ruir.Como foi a gênese do livro Desmoronamentos?Eu exercito o gênero conto há muito tempo, mas não tinha muita segurança de publicar em livro. Comecei a pensar nesse livro há mais ou menos dois anos, o tempo da pandemia. Na verdade, um pouquinho antes da pandemia. A ideia foi essa de trazer narrativas de crise.As personagens estão sempre em uma situação em que são confrontadas, não?Eu tinha uma preocupação que o livro não ficasse pesado demais, mas acredito que ele tem um peso próprio. Não é um livro fácil por conta dessa característica, das personagens sendo confrontadas, como você colocou. Gostei dessa palavra. A todo momento elas estão sendo instadas a alguma coisa, à defesa, ao ataque ou à rendição. Todas elas demonstram esses ferimentos de batalha. São personagens à beira de um ataque de nervos.O antepenúltimo conto, A Mulher Engoliu um Pinóquio, é instigante porque traz a metáfora que também é uma fuga de algo desolador. Tudo pode desmoronar assim?Eu coloco uma citação da Alice Munro que fala sobre isso: como é instável a ideia de segurança e tudo o que a gente constrói em torno de nós para nos sentirmos seguros, em algum momento, pode significar nossa derrota. É o caso do conto Desmoronamentos. É a casa que te mata, que te dá uma generosidade duvidosa.Mas me parece que nos contos, toda essa instabilidade é ainda pior para as mulheres?Se a gente sai da ficção e entra nas páginas policiais, temos uma medida muito exata dessa fragilidade, dessa instabilidade. Trabalhar isso não é agradável. É um livro que pode detonar muitos gatilhos. Ele não fala de coisas estáveis. Ele não é suave. Mesmo nas narrativas que se aproximam mais da infância, é um campo de batalha o tempo todo. Tem um conto, em particular, que me incomoda muito. É o Teresa Cristina Pisa o Valongo. Ele parte de uma ideia real, que é a rejeição que a imperatriz Teresa Cristina recebeu de seu prometido, d. Pedro II. Conta-se que ela pensou em suiciídio quando chega ao Rio de Janeiro e ele vai recebê-la. O que me incomoda tanto é menos o fato de que nenhuma mulher no mundo está livre de passar por alguma violência, mas de quanto as questões de classe e de raça podem cegar uma mulher para a violência ao redor. O Cais da Imperatriz, que era o Cais do Valongo – e agora voltou a ter esse nome depois das escavações arqueológicas –, foi um campo de batalha onde muitas vidas se perderam. Como não enxergar isso? Esse lugar no mundo de degredo, de violência, a que nenhuma de nós está livre, mas que muitas não enxergam. Esse conto joga com os gêneros, com a História e a ficção, convoca o conto de fadas. Mas é tudo muito terrível o que está ali. Ela não poderia saber que ali era um mercado de pessoas escravizadas, mas todas as circunstâncias deveriam tê-la alertado. É essa cegueira de classe com que o conto joga.Você fala que as narrativas não são suaves e nós vivemos um momento muito áspero, de crise muito grande. Esse livro registra esse momento?Totalmente. Durante os anos de 2020 e 2021 me pediram narrativas sobre a pandemia. Eu dizia que não escreveria porque não tinha condição, distanciamento para tratar disso ficcionalmente agora. Mas quando eu olho Desmoronamentos, ele está tão inserido nesse tempo. Não se fala em pandemia nele, mas se fala do ar faltando, do rio invadindo a casa e destruindo tudo. Não precisei falar de pandemia diretamente para falar desse tempo tão agudo e doloroso.Em um dos contos, há a descrição de uma sala com professoras e todas elas com os seus problemas. E como os professores sofreram na pandemia para cumprir seu ofício.Eu fui professora da rede pública durante 13 anos. Eu tenho lugar de fala nesse tema. E venho de uma família de professoras: minha mãe, minhas tias, uma prima. Eu acompanhei muito o trabalho dos professores. E também dentro de casa, nessas aulas on-line. Eu vi como foi difícil para os alunos, mas também para os professores, que estavam dentro da casa das pessoas sendo inquiridas, confrontadas, testemunhando coisas, num País onde, não faz muito tempo, incentivou-se alunos a gravar as falas dos professores para denunciá-los. É um trabalho muito difícil e muito inglório. Há pouco reconhecimento da importância do trabalho dos professores e um desmerecimento em vários ângulos.Dois de seus contos são intitulados com horários, o 3h30 e o 5h40. Por quê?Eu os pensei como contos de inquietação noturna. Eles estão ali entre o sono e a vigília, entre o ato de sonhar e as preocupações. Eles são intitulados com esses horários porque é nessas horas que as pessoas acordam no susto. Hoje menos, mas já fui, por muito tempo, uma pessoa insone. Essas coisas que você pensa na madrugada e se esvaem no outro dia, que parecem ter uma grande importância no momento, mas que no outro dia se desvaneceram. O livro tem um conto abertamente autobiográfico, Cecílio, que conta a história do meu primeiro namorado. O Heróis de Miyazaki também é. O resto é em torno da fabulação e de pensar o lugar não só das mulheres, mas das fêmeas. Vêm muito dessas inquietações de ser mulher nessa sociedade em que você está, continuamente, com o pescoço na bacia de ágata pronto para ser sangrado. Essas histórias que estão surgindo no noticiário, com uma mulher servindo de entretenimento. Sobre essa história da moça com o mendigo, se a gente escreve uma coisa dessas, somos acusados de falta de verossimilhança. Parece uma distopia da Margaret Atwood (autora de O Conto da Aia). Transformam tudo isso em entretenimento, like, risada. Não concebo isso como realidade, embora seja. É a história de Geni, do Chico Buarque. É um gozo com a dor do outro.E os novos projetos?Estou terminando um romance novo. Na verdade, já está nas mãos de minha editora. E estou pensando em um novo romance, dando só um tempinho da escrita. Será o quarto volume da tetralogia Infernal (os outros três títulos são Aqui, no Coração do Inferno, O Peso do Coração de um Homem e O Amor, Esse Obstáculo).E você quase levou o Prêmio Jabuti no ano passado, hein?Que alegria. Eu gostei muito dessa indicação. Foi tão importante essa final do Jabuti, porque foram cinco mulheres. No gênero Poesia, foi uma coisa inédita. Mulheres que se leem e trocam entre si. Eu, a Prisca (Augustoni Pereira), a Marcely (Becker), a Jussara Salazar e a Maria Lúcia Alvim, que não é da minha geração, mas que eu conhecia sua poesia. E foi uma coisa boa de torcida. Eu e as outras, nós consideramos que ganhamos.