“Cora Coralina, para mim, é a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, é uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção e identificada com a vida como ela é, por exemplo, uma estrada.” Em 27 de dezembro de 1980, Carlos Drummond de Andrade dedicou sua crônica no então influente Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, à poeta e doceira da casa da ponte da antiga Vila Boa. Daquele dia em diante, a vida da escritora não seria mais a mesma e os dois autores passaram a trocar correspondências.Revelada para todo o Brasil a partir daquele texto e já com 90 anos de idade na ocasião, Cora Coralina teve pouco tempo para manter esse laço com o poeta mineiro. Uma amizade que nasceu em cartas e telegramas, mas que não teve a oportunidade de um abraço, de uma prosa presencial. Eles nunca se encontraram pessoalmente, mas estiveram muito próximos por meio da literatura. É com esse mote que a Fundação Casa de Rui Barbosa, na cidade do Rio de Janeiro, inaugura no dia 29 de agosto a exposição Nunca Te Vi, Sempre Te Amei, que vai resgatar essa correspondência afetiva de uma relação surgida nos versos de ambos.“Estamos fazendo o levantamento dessa correspondência, mas são, sobretudo, telegramas e cartas em que eles trocam cumprimentos de aniversário, pelo lançamento de seus livros”, afirma Letícia Dornelles, presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, instituição que abriga o acervo pessoal de vários autores brasileiros, entre os quais, o de Carlos Drummond de Andrade. Ela esteve em Goiás no último fim de semana para acertar detalhes da iniciativa. “Vamos fazer uma transmissão na abertura da exposição, com a participação de Marlene Velasco, diretora do Museu Casa de Cora”, anuncia.Marlene afirma que as conversações sobre o projeto estão em andamento e confirma que Cora e Drummond mantiveram uma correspondência constante. “Eles não se conheceram, mas houve um encontro de almas poéticas”, define. “Ele ganhou o livro Vintém de Cobre, ficou encantado e escreveu aquela belíssima crônica. A primeira correspondência dele para ela foi um bilhete, que dizia: ‘Não tendo o seu endereço, lanço essas palavras ao vento na certeza de que as encontrará’. O bilhete foi enviado para a UFG e foi entregue a Cora pela professora Marieta Telles Machado. Daí começou a correspondência do dois”, relata.“Nós vamos montar banners na Casa de Rui Barbosa com a reprodução dessas cartas trocadas entre eles, com informações da vida e da obra de ambos, fotos dos objetos pessoais, das estátuas de Cora Coralina e Drummond. Vamos contar como o poeta lançou a ‘velha escriba’ para o Brasil. Vamos juntar novamente Cora e Drummond”, anima-se Letícia. Ela pondera que é preciso lançar mais luz sobre o legado de Cora. “As obras são bem conhecidas, mas muitas vezes detalhes dessas trajetórias, não.” A exposição deve ficar em cartaz durante uma semana e não há previsão, por enquanto, de vir para Goiás.Afeto e gratidão “Menina nascida em 1889 cumprimenta menino nascido em 1902. Distância nos separa, a poesia nos aproxima.” O telegrama enviado por Cora Coralina a Carlos Drummond de Andrade em um de seus aniversários dá a dimensão do afeto que foi criado entre os dois poetas após seus destinos se cruzarem, já na última parte da vida de ambos. Uma troca de cartas que incluiu outros sentimentos, como admiração e gratidão. Em muitos momentos, essa identificação poética mútua foi expressa com todas as palavras. Em algumas dessas cartas, o poeta assinava: “o beijo e o carinho do seu Drummond”.Foi em 1980, prestes a ser tratada como uma revelação tardia, que Cora remeteu um livro ao escritor mineiro que vivia em Copacabana. A resposta não tardou. “Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano, cintilando na solidão, e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Se há livros comovedores, este é um deles”, elogia. Em uma carta, o poeta escreveu à amiga. “Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado.”Essa correspondência revela ainda a dimensão que Cora Coralina dava a essa amizade. “Drummond, grande amigo, foi só você ver a pedra no caminho e toda a gente passou a ter e haver sua pedrinha bem contada. Vida… Eu tenho tido um monte delas, em verso e prosa, e ninguém disse nada, ninguém me promoveu… Em compensação, o Conselho de Cultura do meu Estado vai me consagrar com a oferta de um Troféu Jaburu, de 10 kg de peso, todo em bronze, isso, agora depois que você descobriu a velha escriba.” Este trecho de uma carta a Drummond é um dos que são reproduzidos nas paredes da Casa de Cora.Marlene Velasco, diretora do museu instalado na antiga residência da poeta na cidade de Goiás, revela que já teve a oportunidade de ir a Itabira, no interior de Minas Gerais, terra natal de Drummond, para falar exatamente dessa relação epistolar entre os dois autores. Não é a primeira vez que as cartas trocadas entre Cora e Drummond aproximam os guardiões de seus acervos. “Temos as correspondências ativa e passiva deles. Consegui no arquivo da casa de Rui Barbosa. Mandei as de Drummond e eles mandaram as de Cora.” Um diálogo que foi inaugurado pelos dois mestres do verso e que permanece ainda hoje.Identificação imediataA exposição Nunca Te Vi, Sempre Te Amei, com as correspondências trocadas entre Cora Coralina e Carlos Drummond de Andrade, é a realização de um desejo que vinha sido gestado já há algum tempo pela presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, Letícia Dorneles. Gaúcha, ela criou uma grande identificação com Goiás quando visitou pela primeira vez a antiga capital do Estado, dois anos atrás, um pouco antes do início da pandemia. “Eu estava com o meu filho Patrick, na época com 10 anos, e conhecemos a poesia de Cora Coralina. Voltei daquela visita e escrevi um livro em uma semana.”O título infanto-juvenil Segura: Patrick Peão é uma homenagem que faz um apanhado de causos e histórias envolvendo a cultura goiana. “É um olhar sobre Goiás, que tem muitas semelhanças com o meu Rio Grande do Sul. Ambos são Estados que têm uma economia rural importante, paisagens e estradas semelhantes, eu acho até Goiânia e Porto Alegre parecidas”, compara. “E quando eu entrei na casa de Cora, eu me lembrei muito da minha avó Luísa Dornelles. Elas eram até parecidas fisicamente. E na casa de ambas tinha o fogão a lenha. Eu disse isso para o meu filho”, recorda.Letícia se encanta com o fato de que Cora Coralina se definia como uma doceira de profissão, apontando a atividade culinária como aquela que lhe dava sustento. Tudo remete a um universo pautado pela simplicidade, por algo genuíno. “Quando estávamos lá, meu filho falou sobre como o Rio Vermelho nunca era igual, de um minuto para outro. Eu me lembrei de Heráclito, que dizia exatamente isso, que o rio sempre flui e muda. Esse é o movimento da vida e aproveitei este tema no livro”, relata. “Nós temos que manter essas tradições orais, por isso essa exposição sobre Cora é tão importante”, complementa.-Imagem (1.2296262)