A Academia Brasileira de Letras foi fundada por um negro, autor que, aliás, é considerado como o maior escritor que nossa literatura já produziu. O primeiro jornalista moderno brasileiro tinha sangue negro nas veias, sendo muitas vezes chamado em sua época, pejorativamente, de mulato. É bom lembrar que um dos principais cronistas do País na primeira metade do século passado era preto e que uma das primeiras poetas de Goiás também era negra. Não é possível falar de nossas letras sem citar Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto ou Leodegária de Jesus. Isso porque nossa literatura também é preta.Mas, apesar disso, nossa história, inclusive a literária, não foi justa com essa óbvia ascendência africana. Tentaram “embranquecer” Machado de Assis, clareando nas fotos sua pele escura herdada do pai, que era chamado de “pardo forro”. João do Rio virou uma figura mais excêntrica que engajada, Lima Barreto ficou marcado pelo alcoolismo e por passagens por sanatórios e Leodegária de Jesus só recentemente foi redescoberta. Mas por que isso acontece? Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, essa pergunta é pertinente, assim como mostrar que tal invisibilidade não é e não deve ser mais tolerada.“A literatura é uma forma de dar voz aos poetas negros. A partir do momento em que nos é dada a voz, temos a oportunidade de reafirmar nossa identidade, nossa luta, nossa história. A literatura é um portal para que nossa voz seja ouvida”, afirma a poeta goiana Gabriela Rodrigues, que acaba de ter seus versos publicados nas antologias da Coleção e/ou, do selo Nega Lilu. “Essa necessidade sempre existiu para mim”, garante a jovem escritora, que em seu perfil no Instagram se define como preta&poeta. Falar desses temas vem sendo mais comum, como atestam livros como Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves.“Existem outras pautas relevantes presentes na minha poesia, como o empoderamento da população negra, empoderamento da nossa identidade, desde o cabelo, a forma de nos vestirmos, até o empoderamento cultural. É o resgate ancestral. Eu honro isso dentro da minha literatura”, explica Gabriela. “Eu retrato o racismo, eu falo das violências que a mulher negra passa, as violências que o povo preto passa. Tenho poesias especificamente para relatar qual é o impacto do racismo na população negra, trazendo também para a minha vivência. Tenho muitas poesias que retratam isso”, destaca. Gabriela não está sozinha nessa jornada. Mel Gonçalves, autora, diretora, atriz, roteirista e coordenadora do Sarau Negritude Viva, terá seus primeiros versos publicados no início do próximo ano, em uma antologia poética. “Meu coração está feliz. A poesia selecionada fala prioritariamente de autoamor, o que em geral é bem difícil de se conquistar, sendo uma mulher negra, obesa, periférica, numa sociedade misógina, escravocrata, gordofóbica e elitista como a nossa. Desejo que pulse como esperança no coração dos leitores.” Suas vivências diante do racismo integram esse imaginário poético que começa a publicar.“Sofri e sofro rotineiramente situações absurdas de racismo, assim como minha família e pessoas que eu amo. Isso faz parte da minha arte, pois a pessoa que sou hoje, empoderada, feminista, independente, artista autônoma, nunca deixará de ser negra, mas também sou muito além do estereótipo negativo que a sociedade insiste em atribuir a mim devido à cor da minha pele”, testemunha. “Pela literatura, podemos, além de nos expressarmos, ensinar, reivindicar, aprender, trazer a público questões relevantes, quebrar paradigmas, apresentar outro caminho de pensamento, sentidos e condutas.”Sentidos e condutas que outros nomes trouxeram e ainda trazem para a literatura brasileira. Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, é um emblema dessa força tantas vezes desprezada, vinda de uma mulher que enfrenta as dificuldades e a pobreza a que boa parte da população preta foi relegada historicamente. Um dos livros mais comentados dos últimos anos foi Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, que trata da ancestralidade negra e de como ela foi tantas vezes calada em sua religiosidade, seus laços familiares, seus dilemas, sua identidade, enfim. O livro é um dos mais vendidos atualmente e não é um caso isolado.A filósofa Djamila Ribeiro – autora de obras como Pequeno Manual Antirracista e Lugar de Fala –, o advogado Sílvio Almeida – que publicou o livro Racismo Estrutural – e o sociólogo Jessé Souza – que lançou o estudo Como o Racismo Criou o Brasil – são exemplos de escritores que conquistam mais e mais público. Outro exemplo é Jeferson Tenório, autor do best-seller O Avesso da Pele. Na obra, ele trata das relações entre o racismo e a violência contra os pretos no Brasil, refletindo sobre negritude. Temas que começam a ingressar em outros espaços, como a Academia Brasileira de Letras, que acaba de receber Gilberto Gil.Esses espaços são conquistados a duras penas. Há vitórias simbólicas, como ter mais representatividade na ABL, onde Gil será apenas o segundo negro da atual composição; e há vitórias práticas, com mais abertura para obras de escritores negros em editoras de variados tamanhos. “É necessário ampliar os espaços para os autores pretos. Tal fato pode começar na inserção de autores pretos na literatura obrigatória escolar”, sugere Gabriela. “Precisamos de mais mulheres, negras, retintas, periféricas e indígenas com oportunidades relevantes de publicar seus trabalhos e serem justamente recompensadas”, concorda Mel.