“Sabe, Sancho, todas essas tempestades que acontecem conosco são sinais de que em breve o tempo se acalmará; porque não é possível que o bem e o mal durem para sempre, e segue-se que, havendo o mal durante muito tempo, o bem deve estar por perto.” O trecho acima é do clássico Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, uma das obras mais importantes da história da literatura, e foi citado em um tweet logo no primeiro dia de 2022 pelo ex-juiz, ex-ministro e pré-candidato à Presidência da República, Sérgio Moro, em uma crítica aos seus principais oponentes, o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Lula.A postagem recebeu uma enxurrada de críticas, uma vez que ela parece ter sido lembrada em uma situação descontextualizada. Como todos sabem, o personagem Dom Quixote é um homem que enlouqueceu e acredita ser um “cavaleiro andante”, que vive a combater inimigos imaginários – como os moinhos de vento, nos quais vê gigantes ameaçadores – e busca sua Doroteia, uma mulher que só existe em sua mente. Criando confusões em sua jornada, ao lado do companheiro Sancho Pança, Dom Quixote acaba se envolvendo em situações absurdas, em que geralmente se dá muito mal. É o caso do trecho citado.Ao proferir essas frases, que Moro deve ter achado bonitas, Dom Quixote acabara de levar uma surra e se lamenta com Pancho pelo ocorrido, sem perder sua “quixotesca” esperança (ou ilusão) de que dias melhores virão. Moro não está sozinho nessa. Esse trecho é bastante citado há muito tempo nas redes sociais como um exemplo de resiliência e otimismo, por anônimos e famosos, sem atentarem para a sátira que o autor faz no livro sobre quem fomenta tais visões. Afinal, o personagem é um lunático, ainda que de coração e intenções boas. Na verdade, são citações pinçadas de obras maiores, algo que a internet ama fazer.Tentar mostrar-se erudito é um dos passatempos prediletos de quem utiliza as redes sociais, sem que haja muita preocupação em ir à fonte primária do que estão reproduzindo. Com isso, cria-se um festival de citações equivocadas, que distorcem os sentidos que elas possuem nos textos originais, isso quando não se inventa autorias ou atribui-se frases a quem não as escreveu. Alguns autores são mais mencionados como Clarice Lispector, Luis Fernando Verissimo, Caio Fernando Abreu, Lya Luft e Cora Coralina. A poeta goiana é uma das mais lembradas em postagens e discursos, mas quantos leram mesmo sua obra?Com essa prática, questões ligadas a direitos autorais são simplesmente atropeladas. Isso ocorre com o uso de imagens e obras escritas, muitas vezes empregadas sem o devido cuidado legal em memes e sátiras. Com essa batalha praticamente perdida – como fiscalizar as milhões de postagens que incorrem nesses deslizes, feitas diariamente nas redes sociais? –, surgiu outro problema: menções em situações e espaços que, certamente, causariam desgosto aos autores do texto. Em tempos de politização, essa contradição cometida por quem não tem ideia de quem está citando fica mais evidente.Debates em torno da vacinação trouxeram os bate-bocas para o campo das liberdades. E nessa “guerra de narrativas”, as citações prosperaram, muitas totalmente fora de contexto. Uma das que têm circulado nas redes é do dramaturgo alemão Bertold Brecht, escrita no âmbito da perseguição nazista, em que critica o fato de pessoas serem perseguidas e outras não se importarem até elas próprias serem as vítimas. “Primeiro levaram os negros, mas eu não me importei, eu não era negro”, começa. As frases têm sido usadas nas críticas ao passaporte vacinal por parte da direita, mas Brecht era um comunista notório e convicto.Exemplos assim são muitos. Ariano Suassuna, coitado, vira e mexe é citado exatamente por quem ele não tinha a menor simpatia: os novos ricos deslumbrados. Clarice Lispector, que falava da liberdade feminina e participou da Passeata dos Cem Mil contra a ditadura, constantemente pode ser vista em perfis reacionários. O contrário também acontece, com autores criticados pela esquerda no passado, como Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues, tendo textos reproduzidos em espaços progressistas. E nessa barafunda de citações sem contexto, a internet vai adubando convicções sem se importar muito com qual fertilizante.Sátiras e pouca leitura“Há algo de podre no reino da Dinamarca”. Ou, quem sabe: “Ser ou não ser, eis a questão.” Talvez até: “Meu reino por um cavalo”. Pobre Shakespeare, transformado num bombril para as citações da internet: mil e uma utilidades. Frases de peças como Hamlet e Ricardo III povoam as postagens de quem busca no bardo inglês as palavras que acreditam expressar melhor suas ideias. Mas será mesmo que é assim? Novamente ele, Sérgio Moro, andou citando Shakespeare ao falar de corrupção na Dinamarca em uma palestra sobre o tema, sem saber que a frase sobre o “algo de podre” se referia a uma trama para matar o rei.Esse tipo de constrangimento se origina do fato de que são poucos aqueles que realmente leram as obras das quais retiram suas citações. Em uma entrevista ao programa Conversa com Bial, na época em que ainda era juiz, Moro foi incapaz de dizer o nome de um livro de cabeceira. Certamente porque não estava lendo coisa alguma ou não tem esse hábito. O atual presidente Jair Bolsonaro também disse recentemente que “há três anos não lê um livro”. Ainda que tantas postagens padeçam deste mal, há algumas que são utilizadas com propriedade e levam as pessoas a conhecerem um pouco melhor a obra de alguém.Na novela Um Lugar Ao Sol, a autora Lícia Manzo tem inserido citações que repercutem nas redes sociais. Uma das mais comentadas veio do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis: “A ocasião não faz o ladrão. A ocasião faz o furto, o ladrão nasce feito”. Esta é uma das tiradas espirituosas de um dos personagens mais interessantes de Machado, o Conselheiro Aires. Outros autores, como Manoel Carlos e Manuela Dias, também gostam de adicionar menções e até leituras de poemas em suas tramas. Nessas novelas, até mesmo livrarias já serviram de cenário, dando oportunidade para falar de literatura.Há também quem prefira satirizar a moda das citações a esmo. No WhatsApp e em redes sociais, como o Instagram, tem circulado um vídeo do filme Rambo em que, do nada, em uma cena de ação, o ator Sylvester Stallone começa a declamar versos de Carlos Drummond de Andrade sobre sua Itabira, com a voz do poeta mineiro. E se divulga por aí que Aldous Huxley disse que “as paródias e as caricaturas são as formas mais agudas de crítica”, quem transita pelo ambiente virtual parece concordar com isso. Assim, podemos “ler” Sêneca ou Platão falando de redes sociais, numa viagem no tempo irônica e inusitada.Mas há perfis dedicados a autores, como Clarice Lispector, Chico Buarque, Jane Austen e Jorge Amado, que se dedicam a divulgar trechos de suas obras, com citações corretas de seus trabalhos. A Casa Frida, especializada em clínica e pesquisa em relação a estudos de luto, mantém num site e nas redes sociais publicações que se amparam na literatura para tratar de várias temáticas. No site, versos de Manoel de Barros, Ferreira Gullar e, claro, frases de Sigmund Freud e Jacques Lacan. No início do ano, publicaram um calendário virtual, com cada mês trazendo uma frase de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.