O espanhol Javier Cercas escreve sobre a jornada de um homem em busca de justiça e vingança em sua obra mais recente, Terra Alta, publicado pela editora Tusquets. O livro trata de um drama tipicamente humano: o acerto de contas com o passado e a procura por redenção.Embora seja um romance policial, com direito a um crime macabro e uma investigação que esbarra na reputação ilibada –mas não totalmente – das vítimas, a obra soa também como tributo ao clássico Os Miseráveis, do francês Victor Hugo.Assim, Terra Alta não é somente uma história sobre o policial que corre atrás dos vestígios que levarão à resolução de um assassinato, a fórmula básica dos romances policiais. Terra Alta é também um pouco folhetinesco, como Os Miseráveis, livro preferido do protagonista.O personagem principal é Melchor, um jovem policial de Barcelona. Filho de uma prostituta, abandonou a escola e foi preso por trabalhar com traficantes. É nas horas livres na prisão que descobre o clássico de Victor Hugo. Como no folhetim, temos o personagem sufocado pela injustiça social e levado a adotar posturas erráticas para sobreviver, mas que lutará para tornar-se uma figura edificada.A trama é narrada em terceira pessoa. Logo, o narrador heterodiegético talvez seja uma das novidades de Terra Alta para os leitores já habituados à produção de Cercas, na qual a escrita em primeira pessoa abunda, como em Soldados de Salamina.Esse narrador de Terra Alta vai começar desviando a atenção do leitor para um homicídio horrendo. “Duas massas ensanguentadas de carne violácea se encontram frente a frente, em um sofá e uma poltrona ensopados de um líquido grumoso – misto de sangue, vísceras, cartilagem, pele – que também respingou nas paredes, no chão e até na moldura da lareira. No ar paira um violento cheiro de sangue, carne atormentada e suplício”, conta o narrador sobre a cena encontrada por Melchor ao investigar o assassinato de um casal idoso, proprietário da maior empresa de Terra Alta. Quem terá cometido a tortura daqueles idosos?Certamente, tamanha crueldade sensibiliza Melchor, cuja identificação com o humanista Jean Valjean, o trágico herói de Os Miseráveis detido por roubar um pão, é evidente. Mas Cercas dará mais profundidade ao seu protagonista fazendo com que Melchor também se encante pelo antagonista de Victor Hugo, o incansável inspetor Javert.É por causa de Javert que Melchor decide ser policial. Inspirado em Javert, ele tentará encontrar o assassino de sua mãe, morta enquanto se prostituía. Influenciado por Javert, não desistirá de descobrir quem matou os idosos.“Javert o fascinou. O que Melchor sentia por aquele ser marginal e marginalizado era muito mais complexo e sutil que o que sentira por Jean Valjean. Javert era o malvado do romance, o autor o criara para que atraísse o desprezo do leitor com sua antipatia rochosa, sua veemência legalista (...). Mas Melchor também sabia que, talvez a despeito do autor, Javert tinha outra cara e sentia que, em sua obstinada defesa das regras, em seu empenho irredutível em combater o mal e fazer justiça, havia uma generosidade e uma pureza diamantina”, conta o narrador.Como em um típico folhetim, identidades ocultas serão reveladas no final da história. Algumas pistas deixadas pelo narrador sobre a autoria do assassinato dos idosos vão se confirmar para não decepcionar o leitor. Mas, como bom folhetim, cumpre a promessa de deixar uma surpresa para o final.-Imagem (Image_1.2354481)