Em setembro de 1987, quando eclodiu o episódio do césio 137 em Goiânia, o cineasta Rafael C. Parrode passava muito dos seus dias na casa dos avós, no Setor Aeroporto, muito próximo ao local do acidente. O diretor tinha apenas 5 anos, mas uma lembrança turva de uma experiência de pavor e pesadelo ainda é guardada na memória. Décadas depois e o realizador agora apresenta o seu terceiro filme, O Dente do Dragão (2021), curta-metragem que estreia dentro da programação do Festival Internacional de Cinema de Berlim, que será realizado em fevereiro de 2022.No experimento audiovisual criado por Parrode, imagens de outros filmes, a exemplo de O Trem de Ferro (1980), de Mário Kuperman, se confundem com mapas de Goiânia e cenas de arquivo do acidente do césio, como Estação Ciência - Césio, um Ano Depois (1988), da extinta TV Manchete. O diretor ilustra memória e tempo para falar sobre as vítimas do acidente, tudo de maneira visual, característica de seus trabalhos, como Bom Dia Santa Maria (2019) e Memby (2020) – este exibido dentro do Festival de Locarno, na Suíça.No Festival de Berlim, até agora dois filmes brasileiros integram a programação, o curta goiano e Se Hace Camino Al Andar (2021), de Paula Gaitán. Em entrevista ao POPULAR, Parrode fala sobre seu filme, a relação com o episódio goiano e a participação na mostra alemã de cinema.O Dente do Dragão expõe uma ferida ainda aberta na memória dos goianos. Como se deu o interesse em criar um filme sobre o césio 137?Já faz uns oito anos que venho desenvolvendo um roteiro para um longa-metragem de ficção que lidava com as reminiscências desse incidente. É um projeto complexo que demanda recursos e que, por isso, ficou se arrastando ao longo dos anos. De lá pra cá, tenho me dedicado a realizar filmes experimentais que me permitem trabalhar sozinho, sem financiamento. Sobretudo nesse momento da pandemia, esse processo criativo se intensificou e decidi retomar as pesquisas para esse projeto de longa. Nessa lida com as imagens de arquivo, senti a necessidade de confrontá-las, e o desejo de fazer um filme com essas imagens foi ganhando corpo.Na época do acidente do césio, você estava em Goiânia? Tem memórias da época?Na época do incidente, eu tinha 5 anos e morava em Goiânia. Meus avós moravam no Setor Aeroporto, muito perto de onde tudo aconteceu. Então, eu tenho uma memória meio turva de uma experiência de pavor, de um pesadelo que a gente não esquece enquanto criança. E isso sempre me acompanhou. Então, esse é um filme bastante pessoal nesse sentido. Não me interessava fazer mais um filme sobre o césio, não me interessava explorar ainda mais a imagem daquelas vítimas.O filme dialoga com experimentos e efeitos visuais e de som. De que forma o curta foi montado? Como você acabou encontrando as imagens de arquivo que ilustram a produção?Esse é o meu terceiro filme. Em todos eles, eu trabalho com imagens de arquivo. Em O Dente do Dragão, 90% das imagens são de arquivo, com algumas poucas coisas que eu filmei pra ajudar a dar corpo a essa narrativa. São arquivos diversos, não necessariamente ligados ao episódio do césio. O que me mobilizava era perceber como as memórias dessas vítimas - que precede essa tragédia - foram sendo apagadas e essas pessoas foram sendo despersonalizadas, suas subjetividades foram sendo destruídas. Então, a materialidade dessas memórias era uma questão importante para mim, sobretudo se pensarmos que todos os objetos e pertences das vítimas, álbuns de fotografias, móveis, roupas, animais de estimação, tudo foi enterrado, e o que permaneceu foi essa imagem distorcida dessas pessoas, reforçada pela maneira como a mídia, os documentaristas e cineastas registraram elas. Eu queria confrontar essas imagens todas. Durante o processo, minha relação com elas foi se tornando cada vez mais problemática. A hiperexposição, a forma antiética como eram abordadas e registradas, o estigma que aqueles olhares imprimiam sobre aquelas pessoas era algo que me dava náusea. Eu achava aquilo tudo muito violento. Por isso, poucos registros da tragédia permaneceram no corte final. Então, a principal questão foi a de quais imagens usar e de como usá-las. Eu não uso arquivos para “resgatar” um período histórico, mas para confrontá-los com o presente e com o futuro. É um trabalho meticuloso de colagem de vários formatos, várias origens, usando as técnicas que a edição possibilita, e sempre de maneira muito livre e intuitiva.O curta faz alusão ao mito de Cadmo, quando mata um dragão e, depois, semeia seus dentes. Como resolveu incorporá-la na história do acidente do césio 137?O mito do Cadmo é uma metáfora que o Claude Lévi Strauss usa em Tristes Trópicos para descrever a construção de Goiânia quando da sua visita em 1937. E para mim ela é certeira para descrever a gênese dessa cidade e da ideia de modernidade de onde ela nasceu – essa cidade construída nesse lugar inóspito, quase inabitável, para erguer um ideal de civilização que se provou completamente falido. Isso tudo conflui para essa contradição da fronteira e desse ideal da marcha para o Oeste da qual Goiânia é símbolo. A tragédia do césio é só mais um desdobramento do fracasso desse projeto civilizatório. São coisas que, para mim, ao mergulhar naqueles arquivos todos, me parecia indissociável. Essa figura do dragão também foi importante na construção simbólica da tragédia das bombas atômicas no Japão; então, esses mitos pareciam se conectar muito fortemente.O que representa o seu curta-metragem estar na programação do Festival de Berlim?Mostrar o filme em Berlim faz com que o filme seja mais visto, causando interesse nas pessoas. É uma oportunidade de abrir portas para o filme e para o meu trabalho. Ao mesmo tempo, me sinto orgulhoso de poder concluir um novo filme e ainda chegar em Berlim nesse momento de completo desmonte das políticas públicas culturais no Brasil e em Goiás. Tentaram aniquilar o cinema brasileiro, mas não somos fáceis de destruir.O filme será exibido em outras telas? Como anda a sua distribuição?Por enquanto, ainda não sei como vai ser a circulação do filme. Estou enviando para alguns festivais e por isso a distribuição ainda está indefinida. Quero muito mostrar ele em Goiânia, e quero que seja visto no cinema. Ele foi pensado para ser visto na sala escura e a princípio estou evitando exibições on-line. Tenho certeza de que o filme vai ter vida longa e oxalá vai ter um espaço para ser mostrado no Brasil logo.-Imagem (Image_1.2376705)