Apenas três anos após o casamento que começou com juras de amor com o rei Henrique VIII, a rainha inglesa Ana Bolena foi julgada e condenada por adultério, bruxaria e incesto. Por ordem do próprio rei, foi decapitada em Londres, no dia 19 de maio de 1536. Quanto às acusações, a maioria dos historiadores concorda que elas são falsas. O crime da rainha foi não ter dado ao rei um filho homem, o herdeiro que ele buscava para perpetuar seu poder e sua dinastia. A rainha perdeu a cabeça porque o coração do rei era volúvel demais.Não deixa de ser curioso o fato do fantasma de Ana Bolena perseguir a princesa Diana por todos os cantos, no filme Spencer, do diretor chileno Pablo Larrain. Com a atriz Kristen Stewart - conhecida por dar vida à Bella Swan na saga Crepúsculo - na pele da princesa, o longa acompanha o último Natal da família real britânica, em 1991, antes do ruidoso divórcio entre Diana e o príncipe Charles. É o pescoço da princesa rebelde que está em risco e ela, a mulher mais fotografada do mundo em uma época em que poucos tinham acesso às máquinas e filmes fotográficos, sabe bem disso.Longe do clima de reconstituição histórica adotado pela premiada série The Crown, da Netflix, Spencer propõe um mergulho mais psicológico no estado de espírito de Diana e da família real no momento em que o casamento do século começa a ruir publicamente. Desesperada por ter de passar três dias presa na casa de campo da família real de Sandringham, em Norfolk, no Reino Unido, a princesa vaga como um fantasma por um castelo mal assombrado rodeada por pessoas que a detestam. Chás, almoços, caçadas e todas as tradições da Casa de Windsor - entre elas se pesar no início e no final da festança - a ferem mortalmente.“Esse é um momento decisivo na história da Diana, porque é quando ela toma uma decisão muito difícil de deixar para trás um lugar, uma família, uma história, uma tradição. Então o filme imagina como ela toma essa decisão, como ganha a coragem necessária para isso”, explica Juan de Dios, produtor de Spencer e irmão do diretor Larrain. Os cabelos loiros ao vento, contrastando com as cores fortes de um terninho de grife acomodado num conversível, fazem Diana parecer, no início do longa, como uma mulher livre e despreocupada.Mas, dentro da princesa, a aflição e o sufocamento aumentam conforme o veículo se aproxima de Sandringham, onde a família real está reunida para as festas de fim de ano. “É uma interpretação nossa de como as coisas podem ter se desenrolado naquele momento. É uma ideia abstrata, um estudo de personagem. Quem realmente sabe o que se passou na cabeça de Diana?”, explica o produtor. Morta há quase 25 anos, Diana é ainda hoje exaustivamente retratada em artigos, livros, documentários e tramas de ficção.O exercício em Spencer é parecido com o diretor Pablo Larrain já tinha feito Jackie, longa de 2016 que narrou os dias subsequentes ao assassinato do presidente John F. Kennedy pela perspectiva da ex-primeira-dama Jacqueline Kennedy. Assim como Natalie Portman foi ovacionada por seu trabalho no filme, agora Spencer gera burburinho em torno de Kristen Stewart. Sua versão para Lady Di deve assegurar uma vaga na disputa pelo Oscar de melhor atriz, após ela embarcar numa montanha-russa de emoções em cena, a fim de mostrar toda a fragilidade, mas também toda a força da princesa do povo.“Algumas pessoas já nascem com um poder, uma energia especial. Diana claramente tinha esse poder de tocar os outros, emocionar. Tinha essa capacidade de se aproximar, desarmar as pessoas, imediatamente criar uma ligação. E, no entanto, a coisa mais triste da vida de Diana é que, na verdade, ela vivia tão isolada, tão sozinha”, disse a atriz. Spencer é o nome de família da princesa Diana. Apesar de ser de uma família mais antiga e mais nobre, o filme mostra como Lady Di sempre foi um elemento estranho e indesejável entre os membros da realeza. A fotografia e a trilha sonora conseguem traduzir bem o clima de angústia da princesa mergulhada na atmosfera de pesadelo.Casos de família A partir do momento em que Diana põe os pés no palácio, tudo o que ela faz parece engrossar uma longa lista de erros que balançam a imagem de uma família que precisa parecer sempre perfeita, mas que, notamos, tem sua própria coleção de problemas mundanos, mesmo que embalados em cetim e adornados por joias. Não deixa de ser curioso o fato da atriz Kristen Stewart ser americana, num filme dirigido e produzido por irmãos chilenos, gravado na Alemanha, mas que fala sobre um ícone tão indissociável da cultura britânica.Em Spencer, Diana é repreendida pelos atrasos, por não usar os vestidos designados para cada dia da viagem, por não fechar as cortinas de seu quarto, por não controlar a raiva pela óbvia traição do marido com Camilla Parker Bowles, por “não ser capaz de fazer coisas que odeia”, como diz Charles numa das cenas. As advertências e o excesso de controle a mergulham cada vez mais na depressão e na bulimia. Depois de Jackie e Spencer, os irmãos Larraín se preparam para encerrar sua trilogia de filmes sobre “mulheres de salto”, como a descrevem. A próxima personagem a ser enquadrada pela câmera de Pablo ainda não foi definida.