As memórias da infância de quando as ruas do Setor Sul ainda nem eram asfaltadas estão guardadas com carinho no coração da bacharel em direito Aline Mello, de 48 anos. “Nasci na região, passei toda a minha juventude aqui, conheci meu marido em uma de suas vielas arborizadas, casei e criei meus filhos todos no bairro”, adianta ela. Todos os dias, sem deixar faltar nenhum, a moradora sai de sua casa para dar água para as árvores e mudas da viela da quadra F-39, batizada carinhosamente pelos moradores de Bosque da Amizade.Um dos primeiros bairros surgidos na então nova capital de Goiás, o Setor Sul nasceu sob os moldes das cidades-jardins europeias. Na época, o urbanista Armando de Godoy projetou a região para que as casas fossem erguidas de frente para bosques e vielas e de costas para avenidas e ruas mais movimentadas. Proposta que não foi bem estabelecida ao longo das décadas. Nas últimas semanas, o bairro retornou às discussões após proposta de um novo Plano Direto de Goiânia, que previa o adensamento e a verticalização do bairro. Há poucos dias a discussão acabou adiada para 2021.“O Setor Sul é uma espécie de pulmão da região central de Goiânia, com diversas áreas verdes que possibilitam um respiro para uma localidade que já sofre com a verticalização”, opina Aline. Presidente da Associação dos Moradores Residentes da Quadra F-39, a moradora faz acontecer no bairro. No último mês, ela e outros moradores do bosque se reuniram por meio de uma vaquinha solidária e reformaram toda a quadra. Com apoio do projeto Virada Ambiental, da UFG, conseguiram 350 mudas para reflorestar as áreas verdes.“São espaços públicos. Precisamos cuidar e não deixar apenas para o poder público”, adianta. O carinho e a atenção que Aline tem como o seu “quintal” vai ao encontro com a qualidade de vida que muitos moradores do Setor Sul buscam em um modelo de bairro. É por conta do ambiente verde, da calmaria e da vocação cultural que o Setor Sul mantém que fez com que a cineasta Adriana Rodrigues fosse morar no local há 20 anos. “Estudei no Instituto Maria Auxiliadora e passei parte da minha infância nos bosques e vielas daqui. Escolhi o bairro para viver”, diz.Nos dias quentes em que os termômetros de Goiânia marcam 40 graus, a viela de sua casa, na Rua 110, é uma espécie de refúgio urbano no meio da área central da cidade. Em fronteira com bairros como Marista, Universitário, Oeste e Centro, o Setor Sul serve de ponto de escoamento para o trânsito. “Acordo todos os dias com passarinhos e até me esqueço que estou no meio da cidade. Plantei mais de 50 mudas na praça da minha casa”, revela.Com vocação cultural em área próxima ao Centro Histórico da cidade, o Setor Sul vem sofrendo interferências urbanas e visuais em seu traçado original. É o caso, por exemplo, da Avenida Cora Coralina, desenvolvida para dinamizar o trânsito da região, ou ainda das atuais modificações da Rua 90 e da Avenida 84 para a construção do corredor do BRT. “Ter uma região de bosques no meio do caos de um centro urbano é único. Muitos dos moradores já se cansaram de lutar em busca de uma melhoria dessas áreas, muitas vezes esquecidas, abandonadas, com problemas como poluição e segurança pública”, reitera Adriana.Ao lado de moradores mais antigos do bairro, como Adriana, o Setor Sul recebe ano a ano novos habitantes que buscam qualidade de vida e tranquilidade. O advogado Lucas Montagnini, 28, mora na Rua 90 há pouco mais de um ano e tem um carinho especial pelo Bosque dos Pássaros, viela com extensa área verde e quadra de esportes. “O setor é especial porque acaba sendo um lugar de alívio no meio da turbulência da cidade grande. Seja pela intensa arborização, pela arte viva nas paredes, pela possibilidade de ocupação do espaço para lazer e esportes ou ainda pela tranquilidade da vizinhança”, destaca.PolêmicaEm tramitação na Câmara Municipal desde julho de 2019, a apreciação do novo Plano Diretor de Goiânia vai ficar para a próxima legislatura, já que a Prefeitura retirou o projeto. Ainda assim, o adensamento e a verticalização do Setor Sul, uma das pautas mais polêmicas do plano, deve guiar as discussões eleitorais.“Não só de importância histórica, que por si só já é pertinente, o Setor Sul é o pulmão da cidade, área de drenagem, tem um valor ambiental sem precedentes para Goiânia”, destaca a arquiteta e urbanista Márcia Guerrante. Moradora do bairro desde que nasceu, há 59 anos, a profissional viu a paisagem da região se transformar ao longo das décadas. “Percebo que há uma relação de vizinhança muito forte. As pessoas que habitam o setor estão mobilizadas, com uma defesa apaixonada”, conta.O ambiente que Márcia tem maior relação afetiva é o Bosque dos Pássaros, mas, ainda assim, a arquiteta diz que todo o bairro tem seu charme embutido nas vielas arborizadas, muros grafitados e na relação de seus habitantes. De acordo com a moradora, o poder público tem negligenciado com a realidade do bairro, mas os próprios moradores tomam as rédeas do lugar onde habitam. “Existe uma relação humana muito especial no Setor Sul, um pedaço da cidade que ainda guarda memória e patrimônio”, destaca.-Imagem (Image_1.2132472)