Misto da alegria de Carmen Miranda com a obra singular de Arthur Bispo do Rosário, Elke Maravilha sempre foi a cara do Brasil. Com o visual extravagante - acessórios e perucas de fazer morrer de inveja qualquer drag queen -, ela fez de si mesmo seu produto artístico mais notável. Admirador desde a infância da persona da artista, o jornalista Chico Felitti lançou recentemente a biografia Elke: Mulher Maravilha pela editora Todavia. Em seu terceiro livro - Chico é autor também do sucesso Ricardo e Vânia, de 2019, e A Casa: A História da Seita de João de Deus, de 2020, - o jornalista narra no livro a vida, a obra, as alegrias e as tristezas de uma mulher singular. Em entrevista ao POPULAR, Chico falou sobre o processo de produção da biografia, das muitas surpresas com as quais se deparou pelo caminho e de seu novo trabalho, o audiobook Rainhas da Noite. Misto da alegria de Carmen Miranda com a obra singular de Arthur Bispo do Rosário, Elke Maravilha sempre foi a cara do Brasil. Com o visual extravagante - acessórios e perucas de fazer morrer de inveja qualquer drag queen -, ela fez de si mesmo seu produto artístico mais notável. Admirador desde a infância da persona da artista, o jornalista Chico Felitti lançou recentemente a biografia Elke: Mulher Maravilha pela editora Todavia. Em seu terceiro livro - Chico é autor também do sucesso Ricardo e Vânia, de 2019, e A Casa: A História da Seita de João de Deus, de 2020, - o jornalista narra no livro a vida, a obra, as alegrias e as tristezas de uma mulher singular. Em entrevista ao POPULAR, Chico falou sobre o processo de produção da biografia, das muitas surpresas com as quais se deparou pelo caminho e de seu novo trabalho, o audiobook Rainhas da Noite. Chico, em suas obras você costuma pegar um personagem e ampliar a história, com detalhes e certa singularidade que, para muitos, passa aos olhos. No caso de Elke, como você teve esse encontro?É o meu livro mais antigo, por assim dizer. Eu, como muitas crianças dos anos 1980 e 1990, cresci fascinado pela figura da Elke na TV. Daí, quando estava na faculdade, comecei a ler mais sobre ela, e descobrir que se tratava de uma mulher fascinante: poliglota, apátrida, libertária, inteligentíssima. Com 20 anos, cheio de ambição e ingenuidade, descolei o telefone do apartamento onde a Elke morava, no Rio. Liguei e pedi uma entrevista, achando que fosse fazer uma biografia dela naquela época - note que estamos falando de 2006 e 2007, ou seja, quase 15 anos atrás. Mas a Elke era uma pessoa que dizia sim para tudo (ou quase tudo) e topou me encontrar. Fizemos uma série de entrevistas, quando ela ia para São Paulo. Nos encontrávamos em bares e em padarias, pela manhã. No fim, essas horas e mais horas de entrevistas não foram usadas naquele período. Foi só em 2019, depois da morte da Elke, que eu fui voltar a essas fitas para, com elas e com viagens por todo o Brasil, escrever o livro que sai agora. Porque ela era uma mulher do Brasil, e sua história passa por praticamente todos os Estados. Quais foram os desafios de resgatar a memória dessa personagem tão icônica e que vive no imaginário coletivo?Escrever sobre a Elke Maravilha tem três desafios. O primeiro é o manancial de informação. Ela foi modelo, foi professora, foi bancária, foi miss, foi personalidade televisiva, foi apresentadora, foi atriz... Enfim, ela fez muita coisa mesmo. O segundo desafio era ir além da narrativa que a própria Elke tinha criado para si. Como era uma exímia contadora de histórias, ela tinha popularizado bastante uma versão da sua história de vida que não necessariamente era verdade. Ela, por exemplo, dizia que tinha nascido na Rússia, no fim da Segunda Guerra, quando eu encontrei sua certidão de nascimento, perdida em uma escola no interior de São Paulo, que provava que ela tinha nascido no sul da Alemanha, em 1945. Ela também dizia que tinha ido parar no programa do Chacrinha por acaso, que não assistia à TV e que não tinha interesse nenhum por esse mundo – quando, na verdade, o Boni e outras pessoas influentes na TV Globo nos anos 1970 relatam que ela correu atrás da oportunidade, e pediu para entrar na TV. Esse personagem que ela criou para si mesma, talvez para maquiar o fato de que era uma mulher ambiciosa e astuta, foi o segundo desafio no feitio do livro. O terceiro era justamente desafiar um pouco o imaginário coletivo, porque a Elke não tinha fãs, tinha praticamente discípulos; então, muita gente que a conhecia bem e era próxima ficou um pouco cioso de ver um jornalista escarafunchando a história de vida dela. Mas acho que o livro é um retrato justo, mostra como ela foi uma artista extraordinária e, mesmo nessas adaptações que fez da sua própria história de vida, só se mostrava uma pessoa de uma inteligência e carisma raros. Elke era uma mulher múltipla e imagino que você tenha apurado diversas histórias até então não contadas. Pode relatar algum episódio que você tenha ficado surpreendido?Opa, o que não falta é história. Conheci, por exemplo, uma freira que por anos foi uma das melhores amigas da Elke. E as duas bebiam bem, mesmo dentro da residência religiosa onde essa mulher sempre morou. Também ouvi dezenas de relatos de como a Elke era generosa. Se tinha um amigo ou amiga com problemas financeiros, simplesmente pegava um maço de dinheiro e jogava para a pessoa, sem dizer uma palavra, e virava as costas. Além disso, tem também bastidores inéditos da relação dela com Silvio Santos. Os dois trabalharam juntos por anos, mas Elke o considerava “um produto americanizado” e o acusava de explorar pessoas pobres. O Silvio Santos foi a única pessoa de centenas que procurei que se recusou a falar para a biografia – até bateu a porta do salão de cabeleireiro Jassa na minha cara. O seu livro foi lançado primeiro no formato audiobook para depois ir para o papel. Como você vê essa linguagem?Eu sou um grande entusiasta de livros em áudio, porque acho que eles podem alcançar pessoas que não têm o hábito (ou o tempo) para ler um livro. E também acho que já tenho uma escrita bastante oral. Para mim, quanto mais simples e fluida for a linguagem, melhor é um livro. E em mais gente um autor chega, que é o propósito, ainda mais quando se escreve sobre uma das figuras mais populares da nossa história, como a Elke. Então, acabou que a adaptação de um formato para o outro foi bem sutil. Chico você também lançou o audiobook Rainhas da Noite, que investiga a trajetória de travestis do Centro de São Paulo. Como teve a ideia de narrar as histórias?Rainhas da Noite nasceu de um nome. Há anos eu ouvia falar de Jacqueline Blábláblá, uma travesti que, diziam as mulheres trans mais antigas, tinha fundado um bordel de luxo no Centro de São Paulo. Veio a pandemia e eu me vi trancafiado em casa. Foi, então, o momento de eu começar a entrevistar essas centenas de pessoas, travestis, mulheres trans, homens gays, lésbicas, drag queens e quem quer que tivesse vivido o Centro de São Paulo dos anos 1970 aos anos 2000, quando estourou ali o mercado de sexo, especialmente de profissionais LGBTQIAP+. Nessas entrevistas, eu fui entendendo que havia uma estrutura de poder. Uma máquina que era comandada por três travestis: a Jacqueline Blábláblá, a Andréa de Mayo e a Cristiane Jordan, conhecida pelas costas como Cris Negão. Cada uma tinha um naco do poder do Centro. As três tinham muito dinheiro, limusine, chegaram a ter dezenas de apartamentos e a aliciar milhares de profissionais do sexo. E o livro foi se desenhando para virar a história de vida das três chefes da máfia. Três pessoas que driblaram as estatísticas e se tornaram donas de um bairro da maior cidade do País, e fizeram coisas notáveis –tanto boas, quanto ruins. É uma história que ainda não havia sido contada inteira. Você se diz um autor da literatura LGBTQIAP+ ou prefere não catalogar e enquadrar suas publicações?Essa é uma grande questão. Quando eu escrevi o livro A Casa, sobre a seita de João de Deus, e passei uns meses em Goiás, uma das minhas motivações era justamente fugir da pecha “autor LGBTQIAP+”, porque meu primeiro livro, Ricardo & Vânia, era sobre duas pessoas da comunidade. Então, eu fui escrever sobre os crimes do João Teixeira de Faria porque não era uma história que passava pela comunidade. Mas, depois, eu vi que fugir de temas LGBTQIAP+ era uma bobagem. Eu sou um homem gay. Convivo com todas as outras letras da sigla há décadas e, por isso, acabo sabendo de histórias inacreditáveis, dignas de serem contadas, como Rainhas da Noite (e até um pouco como a vida da Elke, que era bem próxima da comunidade). Por que eu fugiria disso? Se eu não for escrever sobre as pessoas como eu, quem vai? Um hétero? Duvido.-Imagem (Image_1.2351692)