Uma jovem universitária está grávida. Ela não quer o filho, mas o aborto é proibido, e tanto mulheres que o fazem quanto as pessoas que as ajudam cometem um crime. Ela então corre contra o tempo para descobrir como fazer um aborto clandestino, que começa na cama da casa de uma desconhecida, passa pelo vaso sanitário do alojamento estudantil e acaba no hospital.Essa é a história de muitas brasileiras hoje, mas é também a da escritora Annie Ernaux na França do começo dos anos 1960. Seu relato está no livro O Acontecimento, que acaba de ser adaptado ao cinema. O longa de Audrey Diwan, que ganhou o Leão de Ouro no último Festival de Veneza, chega aos cinemas nesta quinta-feira (7), mas teve pré-estreia no Festival Varilux de Cinema Francês, que chegou ao fim nesta quarta-feira (6).Diwan, que foi editora, jornalista e tem dois romances publicados, conta que é uma grande leitora de Ernaux, mas que só leu O Acontecimento depois de ter feito um aborto. “Eu queria e precisava pensar sobre o assunto, e uma amiga me falou do livro”, diz.Na França, a interrupção voluntária da gravidez é legal desde 1975. O primeiro romance de Ernaux, de 1974, Les Armoires Vides (Os Armários Vazios, sem tradução no Brasil) já mencionava o aborto da best-seller francesa, mas ele só será seu tema central mais tarde, em 2000.O filme de Diwan acompanha a protagonista, vivida pela atriz franco-romena Anamaria Vartolomei, com uma câmera muito próxima, contando as semanas de gravidez que avançam, num clima de tensão e ansiedade que também impregna o livro, um “thriller íntimo”, nas palavras da cineasta.A estudante do longa diz a certa altura que quer ter filhos, mas não naquele momento, não enquanto ainda termina os estudos. Seus pensamentos sobre a gravidez e sobre como acabar com ela já a impedem de seguir como a boa aluna que sempre foi.“O que me interessava não era fazer um panorama do aborto clandestino nos anos 1960”, diz Diwan, “mas tratar dessa vontade feroz da personagem de ser livre, de impor seu desejo sexual, de impor sua vontade de um futuro intelectual, de seu desejo de ser escritora.” Segundo a cineasta, o filme é sobre uma busca pela liberdade, “e nesse caminho a protagonista deve fazer um aborto clandestino, esse é o preço para ser livre”.Leia também:- Veja roteiro com opções de resorts para curtir nas férias de julho em Goiás- Cia. de Teatro Carlos Moreira comemora 30 anos em Goiânia- Confira a programação de cinema em Goiânia e Aparecida de 7 a 13 de julho de 2022O que mais mexeu com a cineasta foi a atualidade do relato de Ernaux. “Todos os países que proíbem o aborto lançam as mulheres à clandestinidade”, diz ela. “Se uma pessoa é contra o aborto, ela tem de aceitar ser confrontada com a realidade do aborto clandestino. Será que ela concorda com esse nível de violência física e moral, de risco e de solidão?”“Até que eu lesse o livro, tinha uma ideia imprecisa do que é isso”, conta a diretora. “Mas então pude compará-lo com o percurso do aborto medicamentoso pelo qual eu havia acabado de passar. Fiquei impressionada pelo fato de que na clandestinidade tudo depende do acaso, com quem você vai cruzar, se essas pessoas vão ajudar ou denunciar você. Há um suspense terrível.”Ernaux, hoje aos 81 anos, colaborou com o filme de Diwan. Na primeira vez em que as duas se encontraram, a escritora relembrou sua experiência, dando detalhes que não estão no livro. “Quando ela escolhe escrever sobre um tema, ela vai ao essencial e deixa algumas coisas às portas da memória”, diz Diwan, para quem foi “extraordinário ter a possibilidade de falar de um contexto social e político, dos amigos, da família e do medo que sentia presentes no relato”.Ernaux leu ainda três versões do roteiro. Ela estava preocupada, conta Diwan, não com a fidelidade ao livro, mas com que o filme não traísse o começo dos anos 1960. “Ela sempre disse que queria evitar tudo que não correspondesse a um pensamento da época, seja na jovem que ela era então, seja na maneira como se pensava o assunto.”A voz da escritora mais velha, que relembra aquele ano de 1963 numa conversa com o leitor, desaparece na adaptação em filme. “Se eu mostrasse Annie atualmente contando essa história, seria como se eu a contasse por um retrovisor, como se estivesse inscrita no passado. O filme perderia esse sentimento de perenidade, de que essa realidade existe ainda.”