Tão logo o desembargador Benedicto Abicair, do Rio de Janeiro, tornou pública a decisão de censurar o Especial de Natal da produtora Porta dos Fundos, na quarta-feira, surgiram as primeiras reações de segmentos da sociedade lembrando a inconstitucionalidade da ação. Mesmo após o Supremo Tribunal Federal (STF), na quinta-feira, revogar a decisão do magistrado, a iniciativa continuou repercutindo no debate sobre cerceamento de liberdades no Brasil. O professor da UFG Rodrigo Cássio de Oliveira é um dos estudiosos de cultura e comunicação que registram ações como a do desembargador fluminense como “afrontas à liberdade em diferentes sentidos”. Doutor em Filosofia pela UFMG e pós-doutor pela Universidade de Pisa, na Itália, onde está neste momento em processo de pesquisa, Rodrigo falou ao POPULAR, por e-mail, sobre o ato de censura nesta semana. Confira:Como você avalia a decisão já revogada pelo Supremo do desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de retirar do ar o Especial de Natal do Porta dos Fundos?Foi uma decisão incompatível com o Estado Democrático de Direito, principalmente por não observar a liberdade de expressão. O desembargador argumentou que a cautelar era necessária para manter a ordem pública, mas isso é evidentemente falso, pois o programa já tinha sido exibido em rede nacional e estava disponível para acesso fechado via streaming. Há mais de um problema nessa decisão. O primeiro, e mais grave, é que o Estado não pode arbitrar sobre quais produtos de ficção os cidadãos podem assistir. A decisão de Abicair registra um sentimento de desaprovação quanto ao tratamento da religião no programa humorístico. Mas isso não deveria vir ao caso, pois a Constituição de 1988 eliminou a prática da censura, e nenhum agente jurídico tem a prerrogativa de barrar produções culturais por conta de como as interpreta. O desembargador agiu como um censor, o que é inaceitável. O segundo problema é que há uma interferência igualmente abusiva na liberdade dos consumidores que escolheram assinar a Netflix e assistir ao programa. Em suma, é uma decisão que afronta o princípio da liberdade em diferentes sentidos. Indivíduos ou partidos que se dizem liberais e são coniventes com essa situação devem ser descreditados, porque na verdade desprezam o sentido da liberdade na democracia.Você consegue apontar uma explicação para essa onda de tentativas de retomada de censura e o apoio a ela por parte de uma certa parcela da população?Vista como uma prática social, a censura não precisa se institucionalizar para ser percebida. A escalada de casos recentes em que ações de censura são realizadas por grupos ou indivíduos no Brasil reflete o nosso momento político que, infelizmente, é favorável para que novos casos ocorram. Eu estou de acordo com os intérpretes que veem a polarização entre esquerda e direita, tal como se configura hoje, como um fator que põe em risco a democracia no País. Mas é preciso também nomear os atores dessa polarização. Vejo pelo menos três deles, que sustentam ideias contrárias à liberdade de expressão. O primeiro é o petismo, articulado em torno da figura do ex-presidente Lula. Essa vertente se ressente do papel que a imprensa teve na revelação dos casos de corrupção que a tiraram do poder, já desde a época do chamado mensalão. A regulação da mídia estava no programa de Fernando Haddad em 2018, e Lula foi libertado da prisão falando grosso contra a Rede Globo, em um tom muito parecido ao que adota o próprio presidente Bolsonaro. As outras duas vertentes são as que estão em voga no presente. De um lado, há uma nova direita que enfatiza temas morais e religiosos. Ela prega intervenções contra o acesso ou o financiamento público da arte que ela considera ofensiva, de modo muito semelhante ao comportamento da direita dos EUA há algumas décadas, quando artistas como Andres Serrano ou Robert Mapplethorpe eram censurados. De outro lado, há uma nova esquerda que passou a se agarrar a falácias de autoridade como “lugar de fala”, como se os pensamentos e as ideias possuíssem cor ou gênero. Essa esquerda não consegue mais chegar ao indivíduo médio de perfil moderado e conservador, para quem a agenda identitária é alheia a seus interesses mais particulares. Esse bloqueio não vem apenas de uma diferença de ideologia, mas do fato de que a própria esquerda passou a defender que esses indivíduos não devem ser ouvidos, porque não atendem aos requisitos necessários para ter opiniões válidas sobre a condição social das minorias. A liberdade de expressão, ao contrário, pressupõe um espaço público aberto, no qual todos têm o direito de falar e ser ouvidos. Ela entende que as posições políticas diferentes podem conviver pelo fato de que o pensamento é universal, e que isso torna possível um acordo racional entre as partes. Nenhuma das tendências políticas atuais está interessada em defender esse princípio.Na sua visão, as redes sociais e a internet poderiam ajudar a combater a censura? Ou poderia potencializá-la? Ou não teria papel tão crucial assim?Como professor de Teorias da Comunicação, eu vejo a internet cada vez mais como uma expressão do funcionamento da sociedade, e não como um elemento que tenha transformado alguma coisa na essência das relações sociais. Dito de outro modo, penso que redes digitais como o Twitter ou o Facebook permitiram que os indivíduos se percebessem melhor como parte de relações que sempre existiram em qualquer organização social, muito antes da invenção da internet. Os antigos líderes de opinião, que mediavam o contato entre o público e a mídia tradicional, se transformaram hoje em influenciadores digitais. A lógica dessas relações sociais não mudou, apesar de elas se manifestarem de maneira diferente, e muitas vezes se mostrarem mais caóticas ou violentas do que gostaríamos. Por outro lado, é importante dizer que as redes digitais intensificaram as relações sociais e fizeram surgir conexões que provavelmente não ocorreriam sem a facilidade da internet. Isso trouxe consequências evidentes para a organização de novos agentes políticos. Os contextos e resultados disso são muito diversos, desde a Primavera Árabe até o sucesso eleitoral do movimento Cinque Stelle na Itália, e eles incluem a atuação de grupos que propagam e justificam práticas de censura no Brasil. Em 2017, o MBL usou as redes para mobilizar militantes contra a exposição Queermuseu, em Porto Alegre. Os neointegralistas de hoje em dia se encontram facilmente on-line. Quem visita comentários em posts jornalísticos sabe como é fácil reconhecer pessoas alinhadas ao extremismo. Seria um erro acreditar que o mundo digital é um espelho fiel da sociedade real, mas seria um erro ainda maior acreditar que estes são dois âmbitos separados. De todo modo, nenhum movimento de censura organizado em redes digitais é diferente de qualquer outra construção de redes na internet, para qualquer outra finalidade, inclusive para combater a própria censura.Institucionalmente, o governo federal também tem demonstrado posições claras contra liberdade de expressão, sob vieses ideológicos, religiosos e políticos. Por exemplo, no fomento de produções audiovisuais. É possível fazer uma projeção das consequências disso a curto, médio e longo prazos?O núcleo ideológico do governo Bolsonaro ignora a liberdade de expressão porque é baseado em um discurso de desforra para o qual a esquerda deve ser combatida e eliminada. Para explicar isso, podemos voltar até a teoria da propaganda de guerra. Trata-se de um modo de fazer propaganda política por meio da divulgação incessante de uma imagem perigosa do inimigo. Esse tipo de propaganda é praticado fortemente na comunicação oficial do governo. Diante de qualquer crítica a Bolsonaro, os eleitores mais suscetíveis a ela continuam a repetir os defeitos de Dilma e Lula. Não importa o assunto, nem quanto tempo tenha se passado das eleições de 2018, essa base fiel continua a temer o inimigo, como se estivessem em uma campanha eleitoral eterna. Um exemplo é a live em que Bolsonaro passou oito minutos assistindo ao discurso de Trump sobre o conflito com o Irã, e nos dois minutos finais faz um discurso contra a política externa de Lula. Quais as vantagens reais de uma política externa tão submissa a Trump? O que dizer da recusa dos EUA a apoiar o ingresso do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)? É como se essas questões simplesmente não importassem. Essa estratégia de comunicação dispensa Bolsonaro de demonstrar as suas próprias qualidades, o que é uma solução conveniente para um presidente inepto. Mas ela é também uma péssima coisa para o Brasil, porque rebaixa o debate público a um nível miserável e forja um governo arrogante, alheio a críticas. O tema da liberdade de expressão está ligado a essa característica do governo Bolsonaro. No contexto de guerra, a liberdade é sempre alguma coisa que não se tem. Ela é algo externo, posterior ao conflito. Quem está em guerra contra a esquerda não pode aceitar que ela fale livremente, pois sua guerra é justamente para prevalecer como ideia e pensamento. Bolsonaro é um governo de guerra, e por isso não tem pudor de defender filtros ideológicos e perseguição a pessoas de esquerda. Para os bolsonaristas, é uma revanche. Para a liberdade de expressão, a ruína.Você teve oportunidade de assistir ao Especial do Porta dos Fundos? Quais foram suas impressões?Eu assisti por causa da repercussão, como muita gente deve ter feito. Fiquei surpreso, porque achei uma ficção de humor banal, que não despertaria a mesma reação em um contexto político menos conflituoso. Como obra de humor, não me agrada. A única coisa inteligente é o tratamento dos personagens bíblicos como seres imperfeitos, cujo comportamento é definido por sentimentos humanos comuns. Recontar a narrativa bíblica assim é interessante, porque aproxima esses personagens dos deuses mitológicos da Grécia antiga. Nesse sentido, a rivalidade entre Deus e José, por ciúmes de Maria, é um ótimo achado humorístico. Mas a execução é toda muito ruim, os atores encenam aos gritos e o humor escrachado acaba resultando em piadas de mau gosto que contrariam o argumento inteligente. O personagem do Cristo gay, por exemplo, acho ruim. Mas fazer humor ruim não é nenhum crime. Pelo menos ainda.