A senhora fala das ligações de Guimarães Rosa com a música popular brasileira. Como vê essas relações e como são seus estudos sobre o tema? A gente tem de pensar que o surpreendente é que você tem um autor que, em geral, é considerado muito complexo, que é o Guimarães Rosa, e que a obra desse mesmo autor, na literatura brasileira, é a que mais recebeu leituras do compositor popular. Do Machado de Assis, há uma canção do Zé Miguel Wisnik e do Luiz Tatit sobre Capitu. O Machado é um grande autor, mas não tem essa série de leituras. Eu fiquei meio impressionada com isso e depois fiz uma pesquisa, que acho que ainda não está pronta, e encontrei mais de 30 canções sobre a obra de Guimarães Rosa e de compositores muito diferentes. Desde compositores mais ligados às raízes até um Tom Jobim. É diferente, por exemplo, de você pegar Kleiton e Kleidir fazendo uma canção para Erico Verissimo no Sul. No caso do Guimarães Rosa, você tem Caetano Veloso, Chico Buarque e um leque muito variado. Depois eu fui ver que na obra de Guimarães Rosa há uma conversa muito grande com a canção. Na hora que você vai ver a força das palavras, quando ele vai buscá-las em seu estado nascente, como ele dizia, há uma musicalidade subjacente. O Rosa traduz isso um pouco em uma carta para uma de suas traduções. Em Guimarães Rosa, esse resgate musical das palavras é muito importante. Existe uma outra coisa em sua obra que é o fato de o sertão ser cantável. O Riobaldo Tatarana, personagem de G rande Sertão: Veredas , diz isso: "O sertão é uma grandeza cantável." O projeto do Guimarães Rosa também captura essa dimensão da sonoridade, dos sons do sertão. E há canções na obra do Guimarães Rosa. Há uma conversa com a canção que parte do autor e isso ajuda a entender como o compositor vai chegar ao Guimarães Rosa e querer recriá-lo por meio das canções. Nesse leque, o que surpreende é o diálogo de Guimarães Rosa com a bossa nova. Eles são contemporâneos, mas parecem atuar em registros distintos, não? A bossa nova é, dos movimentos musicais brasileiros, o primeiro que se aproximou da prosa literária. Os compositores da bossa nova operam com os escritores modernistas. Drummond é muito forte na cabeça do pessoal da bossa nova. Reza a lenda que João Gilberto, de vez em quando, declama inteiro, por telefone e de madrugada, para algumas pessoas para as quais liga, o poema A Morte do Leiteiro , de Drummond. Eu acho que com o Guimarães Rosa é ainda maior. Tom Jobim lia Guimarães Rosa, mas isso só aparece em sua produção madura. Aparece em Matita Perê . Eu acho que a bossa nova leu Rosa. Eu fiz um texto encomendado pela Editora Cosac Naify sobre Guimarães Rosa e João Gilberto, os dois Joãos, e o desafio era tentar colocar os dois para conversar. Aí foi bem inusitado, mas acabou que deu samba. A senhora falou dos modernistas, que tinham a necessidade de reinterpretar o Brasil. Guimarães Rosa, em alguma medida, também redescobriu o Brasil, o do interior, aquele que não estava sob os holofotes. Haveria aí outro ponto de contato? Na verdade, não tinha pensado isso. Eu vejo essa questão no Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas é publicado no mesmo ano do Plano de Metas, que é exatamente o momento em que você tem esse projeto de modernização do Brasil levado às últimas consequências. E há o olhar para o interior. É como se Grande Sertão fizesse o inventário de tudo aquilo que o Brasil modernizado não quis aproveitar até então. A louca, o jagunço, os miseráveis e aí ele vai enumerando. É como se ele chamasse a atenção para o que se perde no moderno, iluminando aquilo que está desaparecendo nesse momento. É possível que isso o tenha aproximado da música. Numa canção como Assentamento , de Chico Buarque, é isso o que está lá. A cidade não mora mais em mim e ele ilumina o que está fora da República, o que não conseguimos incorporar. Esse seu raciocínio sobre a obra de Rosa é correto sim. Guimarães Rosa, no gênero poesia, tem um só livro, o primeiro deles, Magma . Mas lendo Grande Sertão: Veredas , é possível ver que o romance está cheio de poesia. Alguns dizem que dá até para metrificar determinadas partes. Essa prosa poética em Rosa ajudou no estabelecimento de uma relação mais próxima com a música? Eu acho que sim. O compositor brasileiro percebeu isso. Em uma entrevista famosa, Tom Jobim disse que tinha horror a Guimarães Rosa até que começou a lê-lo em voz alta. Aí ele descobriu que aquilo era música. Uma vez, Tom Jobim disse que se lêssemos Grande Sertão em voz alta, iríamos reparar que é uma sinfonia, uma peça. Na hora das perseguições no enredo, você sente a sonoridade, o ritmo que pode ser mais devagar ou mais depressa. Na canção Matita Perê , ele captura isso. Na perseguição, ele acelera; na paisagem, ele diminui o ritmo. O Paulo Sérgio Pinheiro também percebe isso. Há uma canção dele chamada Sagarana , com uma interpretação lindíssima da Clara Nunes, que tem isso. Se você escutá-la, ela é uma canção estranha porque ela captura as palavras de Guimarães Rosa. Eu acho que o compositor saca isso perfeitamente e por isso é tão confortável para ele chegar a Guimarães Rosa. Há pesquisadores, como o professor Willie Boyle, que é alemão e professor da USP e grande estudioso da obra de Rosa, que comentam que o elemento fáustico em Gran de Sertão: Veredas se dá por um pacto que garante ascensão social ao jagunço Riobaldo e não por conhecimento, como no Fausto , de Goethe. Só que em Doutor Fausto , de Thomas Mann, o pacto se dá em torno da composição de uma sinfonia, em torno da música. Há algum intertexto em todas essas referências, já que Rosa foi cônsul na Alemanha e teve no país uma grande referência cultural? Em Guimarães Rosa, nada é por acaso. As influências em Grande Sertão: Veredas são muitas. Acho que podemos pensar nessa possibilidade sim. Não sei o quanto dessa questão Guimarães Rosa tinha na cabeça. O Tom Jobim tinha o desejo de musicar Grande Sertão e ele dizia que não se sentia pronto para fazer isso. Matita Perê é uma suíte e é o início desse projeto. Guimarães Rosa tinha a noção da musicalidade de sua obra, mas não sei se ele pensou o livro como uma peça musical. Seria uma peça clássica, mas entremeada por ritmos brasileiros. Você não narra certas situações do romance se não for com ritmos brasileiros. Eu penso que o Tom Jobim tinha essa consciência. Já o Guimarães... Não me lembro de ter visto essa referência na correspondência dele para seu tradutor alemão. As pessoas têm medo de Guimarães Rosa? Muito. O Proust dizia que você tem de pegar o leitor pelo colarinho logo na primeira página. Acho que o Guimarães Rosa é o único que só o pega depois da 20ª página. Há muito estranhamento na linguagem. Eu mesma só li Guimarães Rosa depois de determinado momento e aí eu gostei. Antes, não. Há hoje um risco de os alunos estarem perdendo a dinâmica da leitura, a capacidade de ficar sozinhos consigo mesmos para ler. O Guimarães Rosa exige isso. Ler é uma coisa solitária e precisa ter uma certa tranquilidade para entrar na história e ir embora. Aí a imaginação o leva pela mão. Se você não tiver esse desejo... A velocidade de nosso tempo, essa coisa de o cara estar teclando no Twitter e vendo TV ao mesmo tempo, não é clima de leitura e isso faz com que Guimarães Rosa continue sendo difícil. Mas se o compositor popular consegue lê-lo e a partir disso fazer uma canção, talvez não seja tão difícil assim. E os professores, têm medo de Guimarães Rosa? Algumas vezes cai no vestibular uma obra de Rosa e alguns professores de ensino médido incutem um certo temor ao autor, não? É verdade. Eu me lembro que, quando eu era estudante, havia uma professora que me apavorava muito com Machado de Assis. Eu só fui curtir Machado muito tempo depois. A mesma coisa aconteceu com vários autores. Não sei se ainda existe isso, mas no meu tempo havia aquela coisa da análise sintática, que era terrível. O Guimarães Rosa produz esse estranhamento e aí talvez seja fruto de um estranhamento da língua, que não existe. O mineiro não fala daquele jeito. Ele inventou aquilo ali. Agora saiu um livro com os quatro primeiros contos do autor ( Antes das Primeiras Estórias ) e é outro Guimarães Rosa, não tem nada a ver. Parece outra pessoa. Para ler Guimarães Rosa, é bom começar com Sagarana ou outro livro de contos antes de encarar um romance denso como Grande Sertão: Veredas ? Não, pode começar lendo Grande Sertão . Dá 20 páginas de lambuja, de crédito para o Guimarães Rosa. É um livro muito bacana. Como é a apreensão de Guimarães Rosa no exterior? Há interesse por sua literatura? Depende da tradução. As traduções italiana e alemã são muito boas. A tradução norte-americana é muito ruim. Nos EUA, o livro parece um bangue-bangue. Guimarães Rosa entra melhor na Europa que nos Estados Unidos. Ele entra bem na África, basta ver as obras de Pepetella e Mia Couto, dois autores tão diferentes que falam do Rosa na África portuguesa. Não me lembro de ele ter muita força na Espanha. Seus tradutores italiano e alemão eram muito bons e eu acho uma doidice aceitar o desafio de traduzir Guimarães Rosa. Ele colaborou na tradução inglesa, mas não ficou muito bom. Parece que ela esvazia a força do escritor. Os familiares de Guimarães Rosa, de Manuel Bandeira e de Cecília Meirelles têm fama de ser difíceis de lidar no mercado editorial. Elas já entraram na Justiça para embargar reedições de obras desses autores e até proibiram publicações de biografias sobre os escritores. Essa postura atrapalha a divulgação do legado literário desses escritores? Atrapalha sim. Eu acho que deveria ter uma outra lei de direito autoral neste país. Aquilo que o ex-ministro da Cultura Juca Silveira começou e que não teve prosseguimento precisaria ser realizado, atualizando essa legislação. Você tem uma autora como Cecília Meirelles que está com seu Romanceiro da Inconfidência parado, trancado dentro de uma caixa porque os herdeiros estão brigando. Essa questão das biografias é um absurdo. Um historiador como Paulo César de Araújo ter seu trabalho queimado! Isso tem a ver com a ausência de uma lei do direito autoral mais recente. No século 18, Thomas Jefferson dizia que é lógico que um produto tem a ver com a realidade do autor, tendo ele o direito de ser remunerado por isso. Mas essa obra também é um bem cultural e, assim, também um bem público. No século 18, Thomas Jefferson já alertava para o fato de o bem cultural ter dupla face. As famílias devem ser regiamente remuneradas, mas não pode ser do jeito que está porque estamos perdendo a dimensão pública dessas obras, que também são patrimônio do povo brasileiro. É necessário haver uma legislação adequada que contemple e articule essas duas faces. Quantas vezes já leu Grande Sertão: Veredas ? Já se cansou de ler a obra? Eu li muito quando estava fazendo a tese de doutorado sobre o livro e a fichei. Tenho um exemplar que acho que me dá sorte. Ele é todo colorido e esse eu guardo lá em casa. Ele já estava todo desmilinguido e eu mandei encaderná-lo e o coloco ao lado dos meus livros. O que é legal em Grande Sertão - algo que não é exclusivo dele - é que todas as vezes que voltar ao livro, em função das suas preocupações, você vai achar uma coisa diferente. Eu o li em determinado momento muito preocupada com determinadas coisas. Quando volto lá hoje, o percurso que o livro me leva é diferente. Isso é coisa de livro clássico. Não dá para cansar de lê-lo. Eu não tenho essa coisa meio mítica sobre o Guimarães Rosa, de que você sempre abre em uma página que tem a ver com o momento em que está vivendo. Todas as vezes que você visitar o sertão de Guimarães Rosa, ele vai te levar para veredas diferentes. Tem muita vereda ali.-Imagem (Image_2127238-6-1)