O Theatro Municipal de São Paulo, no coração da metrópole, assistiu entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922 o maior acontecimento de sua história. Na verdade, poucos eventos culturais tiveram tanto impacto no País quanto aquela semana de um século atrás, que redefiniu linhas estéticas, lançou clássicos e ajudou a formar novas identidades para um Brasil que, comemorando na ocasião o centenário de sua Independência, buscava caminhos mais ousados que pudessem dialogar com as vanguardas artísticas que agitavam a Europa do pós-Primeira Guerra Mundial, mas sem abdicar de elementos nacionais.O POPULAR publica neste sábado e no próximo final de semana duas matérias especiais sobre os 100 anos da Semana de Arte Moderna de 22. Hoje, falaremos das origens daquele movimento que reuniu vários dos principais nomes da cultura nacional, as amizades e os desencontros que ajudaram a temperar o evento, os principais personagens e o que desejavam com a maratona cultural, além de alguns dos clássicos que tiveram sua gênese ali, vários reeditados para comemorar esta data. Na próxima semana, vamos tratar das influências que a Semana exerceu nas décadas seguintes, em outros movimentos inspirados em 22.Com a proposta de buscar nas referências nacionais seu alimento, os artistas envolvidos na Semana de 22 queriam romper as tradições, como se fazia na Europa, mas deglutindo as nuances locais, num redescobrimento do Brasil. Baseados nesse imaginário e, a partir de 22, impulsionados por aquele evento, nomes como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade passaram a produzir de forma sistemática obras que remetiam a altas doses de nacionalismo, mas sem se fechar a contribuições externas. Surgiriam, dentro de tal espírito, obras que se tornaram inescapáveis para a cultura brasileira.Os livros Macunaíma e Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, as obras poéticas em forma de manifestos de Oswald de Andrade, como o poético Pau-Brasil e o Manifesto Antropofágico, e os quadros de Tarsila do Amaral, sobretudo o icônico Abaporu, e de Anita Malfatti orientaram a imagem do movimento na posteridade e as repercussões que teria no futuro. Além disso, ele lançou e consolidou nomes fundamentais para as artes plásticas (Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Victor Brecheret), para a literatura (Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Graça Aranha) e para a música (Villa-Lobos).EstímuloModernismo era palavra da moda nos círculos intelectuais e artísticos das primeiras décadas do século 20. Movimentos estéticos, como o cubismo, o futurismo, o surrealismo, o dadaísmo e expressionismo, com suas exposições e obras emblemáticas, com artistas que se tornaram verdadeiras estrelas e bandeiras que incluíam causas sociais e contestações políticas, faziam a arte ocidental passar por profundas transformações. O mundo vivera o trauma do banho de sangue da Primeira Guerra Mundial, até então o conflito mais mortal da história, e a arte dava suas respostas, bradando liberdade e rompendo convenções.O espanhol Pablo Picasso e suas formas geométricas, o italiano Filippo Marinetti e seu Manifesto Futurista, o expressionismo francês que fazia contraponto ao impressionismo do século 19, o humor e a sátira do dadaísmo nascido na neutra Suíça e a expressão dos sonhos e delírios do Surrealismo, cuja gênese estava em gestação e teria seu manifesto em 1924, mexiam com a imaginação das pessoas e lançavam provocações. Várias delas foram captadas por artistas nacionais. Nomes que promoveriam suas próprias vanguardas no Brasil, com características próprias, fagocitando nossas próprias referências.Os dois principais nomes femininos da Semana de 22 exemplificam essa troca profunda de inspirações. Anita Malfatti, ainda em 1910, passou uma temporada na Alemanha, onde teve aulas com o pintor germânico Fritz Burger-Mühlfeld, nome ligado ao pós-impressionismo alemão. Ela permaneceu por lá até 1914, quando eclodiu a Grande Guerra, indo em seguida para Nova York, onde bebeu em outras fontes, os norte-americanos George Brant Bridgman e Homer Boss, o que mudou completamente sua visão de arte. De volta ao Brasil, tornou-se a pioneira, já em 1917, em trazer uma visão crítica para a arte nacional.Com sua Exposição de Arte Moderna, ela propõe novos modelos de gravura e pintura, mostrando ao Brasil o que havia de ponta na arte na Europa e nos Estados Unidos. Isso foi decisivo para que ela fosse considerada uma líder entre os modernistas brasileiros, mas a transformou em alvo preferencial daqueles que viam nas inovações uma deturpação da arte verdadeira. Ficou famoso o texto do escritor Monteiro Lobato contra o trabalho de Anita. No artigo Paranoia ou Mistificação?, o autor a atacou violentamente, dizendo que suas obras eram frutos de “cérebro transtornado por psicoses”, levando-a a ter uma crise depressiva.Já a pintora Tarsila do Amaral teve o primeiro contato com a arte europeia ainda em São Paulo, em 1916, com o escultor sueco William Zadig. Mas quando foi para Paris, em 1920, seu gênio criativo despertou. Nas aulas com a pintora francesa Émile Renard, ela conheceu as técnicas e o imaginário dos dadaístas e dos futuristas, inserindo os elementos nacionais e criando uma estética muito própria, que a faria a artista plástica brasileira mais celebrada e valorizada no exterior. Depois da Semana de 22, em 1923, ela retornou à Europa, fase em que se aproximou mais das estéticas do cubismo e do surrealismo, mas com marca própria.Esses novos ventos foram impactantes, sendo transformados à moda brasileira. O ataque a Anita Malfatti, ao invés de desestimular as novidades, teve efeito oposto. A elite tradicional paulistana, que via seu poderio econômico e político crescer na República Velha, quis também tornar o estado um farol da cultura nacional. Personalidades endinheiradas, como o empresário, escritor e produtor de café Paulo Prado, financiaram o projeto da Semana de 22, com o apoio estratégico de jornalistas, que alimentaram a efervescência em torno de uma nova arte que surgia. Liderando estavam Mário de Andrade e Oswald de Andrade.Foi assim, anunciada generosamente na imprensa, antecedida por lançamentos, aquecida por discussões estéticas, que a Semana de Arte Moderna de 1922 foi organizada com programação contemplando artes plásticas, literatura, música, teatro e arquitetura. O evento foi aberto por uma conferência do escritor Graça Aranha, que depois seria chanceler no governo Getúlio Vargas, declamando depois versos de Guilherme de Almeida, aclamado como o Príncipe dos Poetas, e Ronald de Carvalho. Depois houve apresentações musicais de composições do maestro Heitor Villa-Lobos, já consagradíssimo e incensado como astro.Mário de Andrade proferiu uma palestra que geraria o ensaio A Escrava Que Não É Isaura, e os versos do poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, foram lidos. O poeta Menotti del Picchia falou da estética moderna. Manuel Bandeira, que caiu doente, e Tarsila do Amaral, que estava no exterior, não estiveram no evento, mas participaram dele nomes como o escultor Victor Brecheret, a pianista Guiomar Novais e o pintor Di Cavalcanti. Mas os envolvidos ficaram tão concentrados nas próprias obras que se esqueceram de convencer as pessoas a comparecerem. O final da Semana foi antecipado por falta de público.Um grupo modernistaEntre os participantes da Semana de 1922, alguns tornaram-se referência na cultura nacional para muito além daquele evento. Veja alguns deles.Mário de Andrade (1893-1945) – Foi um dos principais nomes não só do modernismo, mas para as gerações que vieram depois. Foi um defensor do patrimônio cultural nacional, ajudando a criar o atual Iphan. Também é autor de livros como Amar, Verbo Intransitivo.Anita Malfatti (1889-1964) – Pintora pioneira na arte moderna no Brasil, são dela algumas obras fundamentais de nossas artes plásticas, como O Homem Amarelo e O Farol. Ela transitou por vários estilos e escolas, lecionou pintura e desenho e incentivou a arte popular.Tarsila do Amaral (1886-1973) – Nome fundamental de nossas artes, ela foi esposa de Oswald de Andrade, a quem presenteou com seu principal quadro, Abaporu. É dela também o recorde, com a tela Caipirinha, de obra mais cara leiloada no Brasil, por R$ 57,5 milhões.Oswald de Andrade (1890-1954) – Autor mais polêmico dos modernistas, radicalizou as ideias nacionalistas dentro do movimento, rompendo com vários ex-colegas. Depois de se separar de Tarsila do Amaral, envolveu-se com a militante comunista e escritora Pagu.Candido Portinari (1903-1962) – Caçula do movimento de 22, teve uma carreira ligada ao modernismo mais maduro, retratando personagens do povo, como nas telas Os Retirantes, O Mestiço e Lavrador de Café. Também é autor do mural Guerra e Paz, na sede da ONU.Menotti Del Picchia (1892-1988) – Autor do famoso poema Juca Mulato, publicado ainda antes da Semana de 22, foi um dos líderes do movimento. Fez carreira política em São Paulo e foi da Academia Brasileira de Letras. Nacionalista, flertou com o integralismo.Di Cavalcanti (1897-1976) – Artista responsável pela concepção do catálogo e do cartaz da Semana de 22, foi um dos principais nomes da pintura brasileira no século 20. Fundou o Movimento dos Artistas Modernos e trabalhou em murais em projetos de Oscar Niemeyer.Victor Brecheret (1894-1955) – Italiano radicado no Brasil, revolucionou a arte da escultura no País com obras influentes, como Cabeça de Cristo, O Sepultamento e o Monumento às Bandeiras, cartão-postal da cidade de São Paulo, em frente ao Parque do Ibirapuera.Manuel Bandeira (1886-1968) – Bandeira foi a ponte entre diferentes gerações de autores modernistas, transição entre pioneiros e seus discípulos. Foi colaborador das publicações modernistas Klaxon e Revista de Antropofagia. Um dos maiores poetas do século 20.Heitor Villa-Lobos (1887-1959) – Maior maestro brasileiro do último século, é autor de obras fundamentais, como as Bachianas Brasileiras. Viajou pelo Brasil em busca de sonoridades em todas as regiões e trouxe influências populares para a música erudita nacional.Lançamentos: Semana de Arte Moderna de 1922O Movimento Modernista (Mário de Andrade) – Reedição do livro raro, organizado pela Casa Mário de Andrade, em edição limitada. Noite de lançamento em 27 de fevereiro.Inda Bebo no Copo dos Outros (Mário de Andrade) – Outra obra inédita do modernista em forma de livro, com a reunião de vários textos do escritor que estavam esparsos.Diário Confessional (Oswald de Andrade) – Reunião de cadernos pessoais até agora inéditos de um dos motores da Semana de 22. Eles revelam um outro poeta antropofágico.Serafim Ponte Grande (Oswald de Andrade) – Reedição de uma das principais obras do escritor, com textos e comentários, entre outros, de Haroldo de Campos.Obra Incompleta (Oswald de Andrade) – Publicação em 2 tomos, com mais de 1.600 páginas, reúne obras basilares do autor, como Memórias Sentimentais de João Miramar.Modernismos 1922-2022 (vários autores) – Reunião de ensaios sobre a Semana de 22, assinados por pesquisadores, como José Miguel Wisnik e Lilia Moritz Schwarcz.Mário de Andrade: Exílio no Rio (Moacir Werneck de Castro) – Reedição do relato de um período em que o modernista, em 1938, sentiu a necessidade de “fugir” de São Paulo.Revista Verde, de Cataguases (Luiz Ruffato) – Olhar do autor sobre uma das publicações onde Mário de Andrade escreveu refletindo sobre caminhos e legados do modernismo.Celebrações e lançamentosMuitas iniciativas foram programadas para marcar o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, além de novas edições de várias obras basilares do movimento. Goiânia terá uma programação, entre os dias 11 e 18 de fevereiro, batizada de Semana de 22 – 100 Anos Depois, promovida pela Secretaria de Cultura de Goiânia, União Brasileira de Escritores, Museu de Arte de Goiânia, Arte Plena e Casa Galeria.Dia 11 (08h30) – Palestra On-line: Semana de 22 – Modernismo ou Modismo? Um Elogio e Muitas Críticas. Com Gildo Teixeira e Antônio da Mata. Instagram do CLA.Dia 11 (14h) – Oficina de pintura e gravura com José Nogueira e Kim. No AAMAG.Dia 11 (19h) – Performance Manifesto Antropofágico, com Cia Marula de Teatro. No Museu de Arte de Goiânia (MAG), Bosque dos Buritis.Dia 11 (19h30) – Palestra com Heleno Godoy sobre Modernismo. No Museu de Arte de Goiânia (MAG), Bosque dos Buritis.Dia 11 (21h) – Abertura da exposição Todos os Helenos, individual de Heleno de Godoy, e Gravuras da Coleção Modernista do Centro Cultural da UFG. No Museu de Arte de Goiânia (MAG), Bosque dos Buritis.Dia 12 (09h) – Abertura da exposição Rumos, com coordenação de Adriano Braga. Na Rua 90, Nº 184, Setor Sul.Dia 13 (09h) – Café Sinfônico (Bosque dos Buritis)Dia 13 (10h) – Apresentação da Orquestra Sinfônica de Goiânia com obras de Villa-Lobos (Bosque dos Buritis)Dia 13 (17h) – Palestra Modernismo no Teatro, com Cia Marula de Teatro. No Centro Cultural Goiânia Ouro (Rua 3, Centro).Dia 14 (09h) – Performance de Dança com Luciana Torres e convidados do Centro Livre de Artes. No Mercado Central, Rua 3, Centro.Dia 14 (17h) – Abertura da mostra Coleções Privadas, na Casa Galeria, Rua 89, Setor Sul.Dia 14 (19h) – Lançamento do livro A Arte da Gravura em Goiás: 1950-2000, de Edna de Jesus. Na Casa Galeria, Rua 89, Setor Sul.Dia 15 (09h) – Performance de Dança com Luciana Torres e convidados do Centro Livre de Artes. No Mercado da Vila Nova.Dia 15 (15h) – Exibição do documentário Mudernage, de Marcela Borela. Na sede da UBE-GO, Rua 21, Centro.Dia 15 (19h) – Lançamento do livro Goiânia: Fundações da Modernidade Literária no Cerrado, organizado por Ademir Luiz e Eliézer Cardoso de Oliveira. Na sede da UBE-GO, Rua 21, Centro.Dia 15 (20h) – Lançamento do documentário GEN: Cidades Novas, Escritores Novos, de Ademir Luiz, Arnaldo Salú e Eliézer Cardoso de Oliveira. Na sede da UBE-GO, Rua 21, Centro.Dia 15 (20h30) – Debate com Arnaldo Salú, Maria Helena Chein e Geraldo Coelho Vaz. Na sede da UBE-GO, Rua 21, Centro.Dia 16 (09h) – Mesa-redonda A Semana de 22 e Suas Influências na Literatura, com Bento Fleury, Pedro Nolasco, Maria de Fátima Gonçalves Lima, Lêda Selma e Emílio Vieira. No Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, na Rua 82 com Praça Cívica, Setor Sul.Dia 16 (19h) – Projeção do acervo de registros de prédios modernistas no Museu do MIS. No Museu de Arte de Goiânia, Bosque dos Buritis.Dia 16 (19h30) – Palestra 1922: Arquitetura Brasileira a partir das Exposições de Arte Moderna e do Centenário da Independência, com Ana Amélia Moura Ribeiro. No Museu de Arte de Goiânia, Bosque dos Buritis.Dia 16 (20h30) – Mesa-redonda Art Decó em Goiânia e os 20 Anos do Dossiê de Tombamento. Com Wilton Medeiros, Ana Amélia Moura e Bráulio Vinícius. No Museu de Arte de Goiânia, Bosque dos Buritis.Dia 17 (19h) – Exibição do vídeo da ópera A Décima Quarta Estação, de Miguel Jorge e Estércio Marques. Na sede da UBE-GO, Rua 21, Centro.Dia 17 (20h) – Mesa-redonda A Saga da Primeira Ópera de Goiás, com Miguel Jorge, Estércio Marques, Custódia Annunziata e Juliano Lima Lucas. Na sede da UBE-GO, Rua 21, Centro.Dia 18 (16h) – Palestra Outros Modernismo: A Arqueologia na Arte e no Design Brasileiro da Década de 1920, com Patrícia Bueno Godoy. No Museu de Arte de Goiânia, Bosque dos Buritis.Dia 18 (17h) – Palestra Imaginários Modernistas Transatlânticos, com Paulo Henrique Duarte-Feitoza. No Museu de Arte de Goiânia, Bosque dos Buritis.Dia 18 (19h)– Lançamento do livro Contos de 22, 100 Ano da Semana de Arte Moderna. No Museu de Arte de Goiânia, Bosque dos Buritis.Dia 18 (20h) – Apresentação do Grupo Fé Menina, seguido de Sarau Poético. No Museu de Arte de Goiânia, Bosque dos Buritis.-Imagem (Image_1.2397895)-Imagem (Image_1.2397896)