Até 1894, quando o bacteriologista franco-suíço Alexandre Yersin conseguiu identificar e catalogar o bacilo que causava a peste bubônica – batizado, em sua homenagem, de Yersinia pestis –, a humanidade pouco sabia de alguns dos maiores traumas que havia sofrido ao longo de sua história e que mudaram seus destinos. Na Antiguidade e na Idade Média, civilizações ruíram, impérios caíram, guerras foram iniciadas e interrompidas por epidemias, como a da Peste Negra, que dizimaram imensas parcelas da população, redesenhando a história mundial.Vírus, bactérias e bacilos aproveitaram-se de condições de higiene precárias e da ignorância científica para vencer batalhas contra nós. “A história da humanidade pode ser contada a partir de diversas abordagens”, aponta o pesquisador e professor da UFG Rildo Bento de Souza. Com doutorado em História, ele publicou livros e artigos e promoveu eventos sobre as relações entre a historiografia e a saúde pública. Ele pondera que, no século 20, novos objetos de análise ganharam espaço, entre os quais os estudos da história da saúde e das doenças.Tal interesse tem crescido nesse momento em que, após um século, a humanidade voltou a ser desafiada por uma pandemia, que mudou o ritmo do mundo, como já aconteceu várias vezes no passado. “Quando se estuda determinado período da história, deve-se compreender a relação entre o ser humano e o meio em que vive, no que diz respeito, por exemplo, à Peste Negra, no século 14, bem como à gripe espanhola, em 1918”, alerta o professor Rildo. Na Idade Média, a Peste Negra influiu em rotas comerciais, em crenças religiosas, em governos e conflitos.Se a gripe espanhola ajudou a abreviar o final da Primeira Guerra Mundial, por conta de a epidemia ter sido destruidora nas frentes de batalha, outros surtos abalaram impérios antigos e contribuíram em processos de dominação de povos de terras conquistadas. Seres vivos que habitam a Terra muito antes do surgimento da espécie humana, vírus e bactérias adaptam-se, transformam-se e, invariavelmente, pegam-na desprevenida quando agridem, de uma nova forma, seu frágil organismo. É quando “a peste” surge, seja ela em que tempo for.“Embora a comunidade científica sempre tenha se mantido em alerta para o surgimento de outro surto, como o da gripe espanhola, a maioria da população, e isso inclui os governos, não acreditou que isso fosse possível e não se preparou para uma situação dessas”, avalia Rildo. “E há ainda quem negue os desdobramentos dessa pandemia e até mesmo a própria Covid-19, deslegitimando a ciência e as orientações da OMS, referindo-se a ela como ‘gripezinha’ ou uma doença que mata somente uma pequena parte da população”, critica.Quem conhece a História não comete esse erro. Basta averiguar, no passado, o poder devastador de uma pandemia e seus efeitos imprevisíveis. No livro A Grande Mortandade, o historiador John Kelly, ao estudar a Peste Negra no século 14, mostra que desde os mais pobres até as figuras mais poderosas do mundo foram afetadas pela catástrofe sanitária, do rei da Inglaterra ao papa. O mundo, depois daquela catástrofe, passaria décadas para se reconstruir. E, quando ficou de pé novamente, era outro mundo. A doença o havia mudado.