Em 1º de novembro de 2021, o Brasil perdia Nelson Freire, considerado um dos maiores pianistas do mundo. Ele tinha 77 anos e morreu em sua casa, no Rio de Janeiro, em decorrência de uma queda. Para o pianista Luiz Medalha, de 79 anos, a despedida foi não apenas de um colega de profissão e referência mundial do instrumento — era um adeus a seu amigo de infância, com quem havia se encontrado pela última vez em 2019, em uma vinda de Nelson a Goiânia. “Fui encontrá-lo no Castro’s Park Hotel, que não é muito longe da minha casa”, lembra.Medalha destaca como na ocasião o amigo ainda estava bem e ativo profissionalmente. Isso porque o pianista passou cerca de dois anos sem poder tocar piano e se apresentar em função de dois acidentes que sofreu ainda em 2019 e que afetaram o braço direito e a mão esquerda. “Nelson sofreu três quedas. Em uma delas, quebrou o úmero (osso do braço) e teve que passar por cirurgia. Na outra, quebrou a mão esquerda — e aí acabou”, relata. “Para um músico do nível dele, uma pessoa que vivia unicamente para o piano, isso foi um grande drama, porque ele se viu privado de tocar. Era como tirar o oxigênio dele”, aponta.Do outro lado da linha, Medalha relembra com carinho a amizade dos dois, que teve início há cerca de sete décadas. “Éramos amigos desde os 7 anos de idade, quando ainda usávamos calças curtas”, brinca. “Nos meus tempos vivendo na Europa, Nelson era meu hóspede. Viajávamos muito juntos. Mas eu gostava muito de praia, de Carnaval e de sair à noite. Já ele era mais caseiro, era bem ‘mineirão’. Gostava de ficar em casa tocando piano”, conta. Ao longo de sua vasta carreira internacional, Nelson Freire rodou o mundo e conheceu grandes nomes das artes, política e cultura. “Ele tinha histórias maravilhosas e impressionantes, mas nunca deixou de ter uma simplicidade imensa”, conta.Leia também:- Ausência que ainda nos rodeia- PsiQUÊ?: Pandemia trouxe sofrimento, mas também transformaçõesAo falar sobre a sua visão do luto hoje, aos quase 80 anos, Medalha diz se tratar de um processo universal. “Desde que o mundo existe, desde o momento em que nascemos, já estamos indo para o luto. E ele se manifesta de maneiras diferentes. Mas na nossa civilização ocidental, o luto é visto como uma coisa muito triste, por significar a perda, a morte — e dela ninguém foge”, comenta. “Não sou um estudioso do assunto, mas sei que em algumas religiões e culturas se celebra quando uma pessoa parte. Por outro lado, temos lugares que vivem o luto constante, por estarem em guerra, por verem suas crianças morrendo”, diz.Além do amigo de infância, o pianista viu outros amigos e colegas da música falecerem nos últimos anos em decorrência da pandemia. “Foram muitas perdas, mas acredito que os lutos mais dolorosos são os das perdas inesperadas. Quando pessoas idosas que já possuem fragilidades partem, já estamos mais preparados”, admite. No caso do amigo, Medalha já imaginava que ele partiria em breve após as paralisações de suas atividades. Agora, ficam as lembranças, os álbuns de fotos, as histórias e a música que o amigo deixou de legado.O que é o luto?Nelson Freire viveu uma grande perda nos seus últimos anos de vida ao ficar impossibilitado de exercer a sua principal atividade, que era o que mais amava fazer. Como o amigo Luiz Medalha definiu, ele viveu unicamente para o piano. Nelson viveu um processo de luto nessa fase final — e que não se limita a situações de morte de um ente querido, como explica a psicóloga clínica e hospitalar, psico-oncologista, terapeuta em perdas e paliativista, Edirrah Gorett Bucar Soares, autora do livro Conversando Sobre o Luto.Para falar sobre o assunto, a especialista aponta que é preciso, primeiramente, entender o significado de luto. “Luto é uma experiência universal. Todos nós um dia ficamos de luto. E quando se fala em luto e perda, o primeiro luto significativo é o nascimento, quando a criança sai do ambiente aconchegante e protetor da barriga da mãe e, de repente, tiram isso dela”, explica. Luto é, portanto, uma reação ao rompimento de um vínculo afetivo. “Ficamos enlutados pela perda de um ente querido, mas não só por isso. É também por outras perdas, como a morte de um animalzinho, por uma separação, um divórcio. Por perda de status, perda de emprego, mudança de casa. São todos considerados lutos”, diz.O período da pandemia intensificou uma série de perdas para o indivíduo e para a sociedade. “Nunca tínhamos vivido tantas situações de luto como nessa pandemia. Lutos individuais, lutos coletivos. Além de perder entes queridos em um curto espaço de tempo, também houveram diversas outras perdas”, diz Edirrah. Ao pensar na população idosa, principalmente no início da pandemia, a principal orientação era não entrar em contato com os mais velhos por serem um dos principais grupos de risco para a Covid-19. “Quando fui visitar meus pais em 2020, eles, que tinham 92 anos, estavam muito desesperados e abatidos. Papai havia contratado um plano funerário e andava com ele em uma pasta”, conta a psicanalista Carmen Bruder. “O discurso deles era de que aqueles poderiam ser os últimos dias de vida. Os idosos sofreram muito com essa situação toda”, diz. Ela aponta, ainda, a dificuldade dessa parcela da população de procurar ajuda psicológica, mesmo quando estão em sofrimento. “O processo de envelhecer acaba sendo muito sofrido para muitos, por significar a perda de esperança. Esperança de ficar bonita, de ficar saudável, de viver. É muito complicado esperar que essas pessoas procurem ajuda, porque muitas querem apenas caminhar para o fim da vida”.