Crianças compreendem a morte? Conversar abertamente sobre a perda de um ente querido pode ser traumático para elas? E como uma criança vivencia o luto e manifesta suas dores? “Muitas das vezes o adulto quer que a criança compreenda o processo. E eu devolvo a pergunta: será que nós, adultos, compreendemos?”, questiona a psicóloga e psicanalista Patrícia Gramacho. Neste sábado (4), o projeto PsiQUÊ? dá início à série especial do mês de junho que aborda um assunto que ganhou um significado ainda mais delicado com a pandemia de Covid-19: o luto. Inaugurando a série de reportagens, o projeto convida especialistas para tratar sobre o luto infantil, momento que pode ser desafiador para muitas famílias.Uma das principais dúvidas e receios do momento de se abordar o assunto com os pequenos está a questão do trauma. “Considero importante definir antes o que seria a palavra trauma”, aponta Patrícia. “De alguma forma, todo trauma é um excesso, ou seja, algo que não possui representações possíveis de serem integradas e absorvidas no mundo interno de uma pessoa, principalmente pela falta de contextualização sobre o lugar, o tempo e como tudo aconteceu”, diz.Neste sentido, a forma como o assunto será abordado com a criança pode, sim, ser traumática em algumas situações, segundo a especialista. “Por exemplo: para aquela criança cujo primeiro contato com a morte está se dando com a vivência da perda de um familiar próximo, sem a possibilidade de talvez vivenciar a expressão de tristeza em algum ritual familiar, esta experiência pode deixar marcas difíceis justamente pela impossibilidade da expressão emocional associada”, explica. “Alguns adultos não suportam o choro da criança, o sofrimento infantil. Contam rapidamente a notícia de morte e se afastam evitando o acompanhar da expressão emocional”.Expressando a dorA forma como a criança irá expressar suas emoções é outra questão importante no momento de enfrentamento do luto. Muitas não irão conseguir explicar o que estão sentindo, dando sinais que devem ser acolhidos e respeitados pelos adultos. “Choros por detalhes irrelevantes do dia a dia podem aparecer no decorrer dos meses seguintes, que devem ser acolhidos ainda como uma expressão da perda vivenciada”, exemplifica.Manter a rotina do dia a dia é importante para atravessar o período, que pode ser conturbado para a família. “O cuidado com as necessidades básicas, o comer, o dormir. O ‘continuar sendo’ pode facilitar a integração desta descontinuidade que a morte nos provoca e, algumas vezes, o encontro com os pares de iguais na escola, por exemplo, pode auxiliar neste seguir adiante, mas sem passar por cima da dor”, comenta Patrícia. Ela indica a procura de um especialista para acompanhar a criança principalmente se há sinais de isolamento, agitação, culpa ou autoagressão.O reflexo do luto do pequeno Lorenzo Braz, de 8 anos, foi justamente na escola. “Ele não conseguia se comunicar com os colegas, as notas caíram muito. E só conseguimos identificar esses sinais porque ele fazia aulas de reforço na escola e a pedagoga que o acompanhava me relatou que os desenhos dele estavam muito ligados à tristeza e à dificuldade de aceitar uma mudança drástica na vida dele”, conta Beatriz Viveiros Braz, de 35 anos, mãe de Lorenzo.A rotina escolar do garoto estava diretamente ligada a sua bisavó, que morreu em 2021. “Eles tinham uma ligação muito forte, porque ele ficava com ela depois da escola”, explica. A pandemia já havia distanciado Lorenzo da bisavó, que teve uma morte muito rápida após uma infecção de urina. Cerca de três semanas depois, uma tia avó do pequeno também faleceu. “Foram mudanças primeiramente por causa da pandemia e, logo depois, pela morte. Foi muito pesado para ele”, observa a mãe.O apoio da pedagoga, que teve um olhar sensível sobre os sinais de que a saúde mental de Lorenzo estava afetada, foi fundamental para o encaminhamento para um psicólogo e para o processo de luto. O suporte da família também foi e tem sido muito importante, como a companhia e cuidado da vovó Alcyone, que recebe o neto em casa após as aulas.“Em nenhum momento mentimos para ele. Tratamos do assunto de uma forma mais lúdica, mas apresentamos a realidade de que ele, de fato, não iria mais conviver com a bisa”, diz Beatriz.Rede de apoio é fundamentalUma rede de apoio é fundamental nesse processo, de acordo com Patrícia Gramacho. “Ela funciona como uma ‘tribo’ na hora de atravessar esse momento difícil, porém sem ser intrusiva”, diz. “Nesta hora é importante perguntar sobre o desejo da criança de participar no funeral, ou de apenas ver a pessoa querida isoladamente em um momento mais privativo da família.”A profissional acompanha muitos casos em que o adulto cuidador principal pode ficar extremamente desamparado e não conseguir lidar de imediato com a criança. “Nestas situações, pergunto quase sempre qual seria a outra figura de referência da criança, para que esta pessoa também possa permanecer sempre ao lado da mesma”, diz. SomatizaçãoA manifestação das emoções pode surgir também com sinais físicos e inespecíficos, como explica a pediatra Ana Escobar. “A resposta ‘orgânica’ das crianças pode se dar através de enjôos, dores de cabeça, dores abdominais, às vezes nos membros. Esses sintomas refletem um estado de ansiedade e depressão através desse tipo de somatização, quando a gente procura e não encontra nenhuma causa física para tais sinais”, diz. “No caso do luto, observamos também uma maior reclusão por parte das crianças. Elas tendem a ficar mais isoladas dos outros, no seu mundinho próprio - e, nesses casos as telas ainda favorecem esse comportamento, por deixá-las envolvidas com séries e jogos.”