Como compreender o sofrimento de alguém que ainda não sabe explicar o que está sentindo? O choro do bebê está restrito a necessidades fisiológicas, como fome e sono, e a dores físicas, como na barriga ou quando os dentinhos estão crescendo? E o que é a famosa birra? Neste sábado (9), o projeto PsiQUÊ? dá início a mais uma série de reportagens especiais sobre cuidados com a saúde mental e dedica o mês de julho à infância. Os especiais também estão sendo produzidos e veiculados nos demais veículos do Grupo Jaime Câmara, TV Anhanguera e rádio CBN Goiânia.Reconhecer a criança como indivíduo e compreender a linguagem utilizada por ela para se expressar. Entender também que a maneira como os adultos se comunicam com ela é uma etapa fundamental para o seu desenvolvimento, respeitando que existe, sim, uma capacidade de assimilação do que está sendo dito para a criança. A partir dessa ideia, a engenheira civil e empresária Juliana Batista Reis, de 36 anos, e o bombeiro militar Eduardo Bernardes da Silva Júnior, de 35 anos, assumiram o diálogo, o respeito pelos sentimentos e formas de expressão do pequeno Guilherme Bernardes Reis, de 1 ano e 6 meses, como elemento central da sua criação.“Passei a estudar sobre formas de comunicação desde que eu decidi engravidar, até mesmo pela maneira como foi a nossa criação, com castigos, apanhando e com os adultos impondo as coisas e não nos explicando nada, dizendo apenas: ‘é isso porque estou falando que é, e pronto’’’, comenta Juliana. Ela concluiu que o processo de educar o filho que estava a caminho seria mais fácil se ela e o marido se baseassem no diálogo desde o princípio. “Então desde que o Guilherme nasceu, mesmo quando ele ainda tinha meses de vida, eu sempre conversei com ele sobre tudo’’, conta.Ela deu como exemplo os momentos em que precisava sair de casa e levar o filho, ainda bebê, junto. Colocou em prática o que aprendeu com os especialistas e pesquisas: que apesar da criança não compreender por inteiro a situação a que ela está sendo colocada, ela entende que vai sair da sua zona de conforto, do local que está acostumada a estar todos os dias. “Se a gente ia para o supermercado, por exemplo, eu explicava que estávamos saindo, que a luz daquele local seria diferente”, diz.Leia também:- PsiQUÊ?: “Há uma dificuldade de pensar na morte e se preparar para ela”- PsiQUÊ?: Pandemia trouxe sofrimento, mas também transformações- PsiQUÊ?: Luto é um processo individual e deve ser respeitadoAtualmente, Guilherme já frequenta uma escola. “Esses dias eu estava muito atrasada para buscá-lo. Pedi para a professora falar com ele e informar que eu iria chegar atrasada, porque ele observa e entende que está todo mundo indo embora e ele está ficando ali. Isso envolve os sentimentos dele. Eu tento ao máximo explicar para o Guilherme o que está acontecendo ao redor para ele não ser surpreendido”, conta. Através desse cuidado com a comunicação, Juliana aposta que, em alguns anos, o filho se torne uma criança que consiga expressar com mais facilidade o que está sentindo e da onde veio aquele sentimento.Todo esse processo é, sim, trabalhoso. Por isso, ela aponta o cuidado com a saúde mental do adulto que está à frente da criação da criança como etapa fundamental. “A pessoa precisa estar bem psicologicamente para cuidar de uma criança. Muitas vezes a gente nem acha que precisa de ajuda profissional para isso, mas, no fundo, temos sim”, comenta. “E conto com o Eduardo, meu esposo, que assumiu a parte dele e divide comigo esse trabalho com o Guilherme”, diz.Bebê como indivíduoA psicóloga clínica e psicanalista Lia Batista trabalha exclusivamente com bebês e crianças com autismo. Ela explica que existem algumas especificidades na abordagem da clínica com o bebê. “Trabalho diretamente com a pessoa que cuida do bebê, que exerce a função materna e que não necessariamente é a mãe. Pode ser, sim, a mãe, mas também o pai, tio, avó”, explica. Ela destaca que, ao receber um bebê no consultório, ela está recebendo um sujeito. “Aquele corpinho que está ali, ainda se construindo, já tem o que dizer - e muito. Fazemos a aposta que esse bebê já é um sujeito e já tem algo para dizer, mesmo que não de forma consciente ou usando uma linguagem explícita, como a que utilizamos ao falar, por exemplo”, diz. A partir do referencial psicanalítico, detectar o quanto antes as dificuldades que o bebê ou criança apresenta e realizar o mais rápido possível intervenções diversas, seja na linguagem, aprendizagem ou no desenvolvimento motor, por exemplo, é fundamental para a estruturação desse sujeito. A partir disso, considerar os motivos do sofrimento na infância se tornam imprescindíveis - e, aqui, considera-se que o sofrimento de um bebê pode, sim, ser psíquico. “Vamos entender toda a história transgeracional e o sofrimento que ele pode estar mostrando através de um choro ininterrupto, um distúrbio do sono, distúrbio alimentar, refluxo forte, dores. Tudo isso são maneiras do bebê dizer que não está bem”, aponta.“Na fase que chamamos de primeiríssima infância (0 a 3 anos), a criança também apresenta sofrimento psíquico, ainda que ela esteja em um momento de constituição e estruturação psíquica. Hoje a gente sabe que esse é um momento essencial para o desenvolvimento tanto neuronal, quanto da subjetividade de uma criança”, comenta a psicanalista Fernanda Piva. “Nesse período, são feitos registros cerebrais e psíquicos de experiências, que vão criando uma base importante para que outras aquisições se estruturem sobre ela, como a questão da linguagem e da aprendizagem”, diz.Lia Batista comenta, ainda, sobre as crianças que choram e pedem colo demais e as dúvidas sobre como agir diante disso. “Um bebê não chora e nem precisa de colo sem razão. Se ele chora, é porque ele não está bem. Se ele precisa de colo, é porque algo na constituição do corpo e na sua psique precisa ser revisto. Não existe birra de uma criança. Existe uma criança que está chamando atenção, dizendo: tem algo que eu não entendi e que só vou parar de ter esse tipo de comportamento quando eu entender”, explica. “É preciso escutar os bebês sempre. Investir na primeira infância é o que há de mais produtivo a nível de saúde pública e bem-estar”, diz.Desde a barrigaGravidez, parto e puerpério são fases que afetam não só física, como emocionalmente a mulher. Ansiedade, preocupação e medo já são pontos que a psicóloga Gabriela Vieira Lopes, de 34 anos, compreendeu que precisam ser trabalhados em terapia mesmo antes do seu bebê nascer. Ela está no sexto mês de gestação. “Para mim, principalmente, acho importante o acompanhamento profissional porque passei por um aborto anteriormente. No mês que vem, por indicação da minha obstetra, começo a frequentar grupos terapêuticos de preparo psicológico para mães”, conta.Ela observa que, principalmente no período de pandemia, em que as gestantes integram os grupos de risco da Covid-19, a ansiedade e medo foram intensificados. “Tivemos o surto de dengue recente também. E qualquer medo, quando a gente está grávida, é muito. Oferecer esse tipo de suporte psicológico é fundamental”, diz. A pediatra Marla Avelar aponta que quando a mãe passa por muitos processos que afetam a sua saúde mental, os bebês podem desenvolver atrasos na fala e outros problemas, como alterações do desenvolvimento global, atrasos na psicomotricidade, déficit de aprendizagem, dificuldades da fala e linguagem. "A pandemia exaltou essas dificuldades que os profissionais da infância dão mais atenção. E isso tem sido visto que esses sintomas de atraso e desenvolvimento tem se manifestado muito precocemente.Recém-nascidosOs primeiros dias de vida também são fundamentais quando se pensa no cuidado com a saúde mental da mãe e do bebê. “Bebês que já nascem mais sensíveis irão demonstrar mais dificuldades de se comunicar com os outros, como aqueles que nasceram após a mãe sofrer no parto, ou que ficaram internados na reanimação prolongada”, comenta a psicóloga clínica e psicanalista Lia Batista. “Nas últimas pesquisas que estão sendo feitas quando falamos de sofrimento psíquico, fala-se da maneira como ele pode ser expresso pelo bebê, e é sempre através do corpo. Ou seja, um bebê pode mostrar um sofrimento psíquico quando o corpinho dele não está bem”, explica. O trabalho com a saúde mental nesse primeiro momento pode influenciar, inclusive, no laço entre pais e filhos que será desenvolvido. Além disso, ela alerta para o fato do sofrimento de um bebê estar sempre acompanhado do sofrimento de toda uma família. “Se a gente não conseguir ajudá-lo desde o início, quanto mais o tempo passa, mais as redes neurais e as aprendizagens vão se solidificando”, comenta. “Uma mãe e um bebê deveriam aprender a dançar uma espécie de valsa nesse início, onde cada um reconhecesse o seu passo. Mas, em alguns casos, isso não acontece, desencadeando um desarranjo numa dança que deveria ser melhorada dia após dia, se transformando em uma luta de caratê”, exemplifica.Um levantamento da Fundação Oswaldo Cruz aponta que cerca de 25% das mães têm depressão pós-parto no Brasil. No mês de maio deste ano, um projeto de lei proposto pela vereadora Sabrina Garcez (Republicanos) batizado de Lei do Umbiguinho garante o atendimento psicológico às mulheres durante ou logo após o parto. Para isso, todas as unidades da rede básica de saúde do município que realizam serviços de acompanhamento gestacional ficam obrigadas a oferecer esse atendimento, disponibilizado de forma opcional e que deverá ser solicitado previamente.