PsiQUÊ?: "Todo bom livro tem efeito terapêutico", diz Dante Gallian
Autor do livro 'A Literatura como Remédio' mostra que a leitura e a discussão coletiva dos livros clássicos têm um poderoso efeito terapêutico, ajudando a pensar nos temas essenciais da existência humana como a dor, a morte, o amor e as relações
Renato Queiroz

Dante Gallian: "A literatura tem o poder estético, palavra que vem do grego que é o antônimo de anestésico. Ou seja, ela tem um efeito de despertar” (Theresa Pereira Gallian)
De um lado, médicos altamente competentes do ponto de vista técnico. Por outro, uma formação deficitária em relação à preparação para o cuidado de pessoas que não apenas têm órgãos ou sistemas doentes, mas que padecem de suas enfermidades como seres humanos. Foi essa situação encontrada pelo professor Dante Gallian, criador do Laboratório de Leitura e da Responsabilidade Humanística, em uma escola de medicina. Historiador, mestre e doutor em história social, baseado numa experiência desenvolvida originalmente na escola, Dante escreveu o livro A Literatura como Remédio: Os Clássicos e a Saúde da Alma. Ele conta que a leitura e a discussão coletiva dos livros clássicos propiciaram um poderoso efeito humanizador e terapêutico entre os alunos. Por meio da literatura, ele pode levar os futuros médicos a pensarem nos temas essenciais da existência humana como a dor, a morte, o amor e as relações. Na prática, é como se bons livros fossem verdadeiros remédios, em especial para a manutenção da saúde mental, e para uma vida com mais empatia. Foi sobre esse trabalho e seus desdobramentos que o professor conversou com O POPULAR. Confira trechos:
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Como nasceu a ideia do livro a Literatura Como Remédio - os Clássicos e a Saúde da Alma?
A experiência nasceu há 20 anos na Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo, onde sou diretor e criador do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde. A intenção era ampliar um pouco a formação do futuro médico e profissional da saúde. A ideia era fazer com que a abordagem, a visão desse futuro profissional, não ficasse restrita a algo essencialmente científico e técnico. Fui fazendo uma série de experiências e tentativas, e acabei encontrando na literatura, de maneira especial na leitura compartilhada dos clássicos, um meio extremamente eficaz de despertar esses alunos. Transformei isso também no meu objeto de pesquisa, da literatura como remédio.
O senhor ensina que a literatura nos enche de coragem, de esperança e de força para enfrentar os desafios da vida. De que forma esse processo acontece?
A literatura tem o poder que a gente chama de estético, palavra que vem do grego que é o antônimo de anestésico. Ou seja, ela tem um efeito de despertar, abrindo portas e janelas e, mais ou menos, nos ensinando a viver. É nesse sentido que digo que ela pode ser um elemento bastante interessante para despertar aquilo que está em nós, mas que, muitas vezes, está adormecido, anestesiado. Ela ajuda a olhar para a realidade de uma forma mais ampla e mais profunda e, nesse sentido, nos ajuda a viver melhor com a gente mesmo e com o outro.
Esse raciocínio serve para as outras artes como o teatro e a música?
Sim, isso vale para a arte como um todo. Inclusive, no grupo de pesquisa que coordeno, temos experiências com outras artes como cinema, música e fotografia. Por outro lado, a literatura tem características muito peculiares. É uma experiência estética que chamo de longa duração. Enquanto assistir a um filme ou ouvir uma música é algo relativamente de efeito imediato, um livro pode te acompanhar por dias, semanas e até meses, criando um envolvimento maior. O efeito, portanto, é mais permanente e profundo no aspecto da humanização e da transformação.
Por que o senhor considera o livro um instrumento libertador?
O livro nos liberta na medida em que nos mostra, de maneira muito peculiar, quem nós somos. O mundo cada vez mais atrelado aos aspectos tecnológicos - e não estou criticando isso - de certa forma desumaniza. Grande parte das doenças que a gente vive hoje vem desse processo. A literatura se torna libertadora quando nos reconecta com aquilo que é próprio do humano.
Todo livro pode ser lido com esse fim?
Teoricamente sim. A questão de no Laboratório de Leitura ter feito a opção pela literatura clássica tem a ver com a experiência de tentativa e erro. Acabei descobrindo que não é por acaso que um livro se torna um clássico. São obras que permanecem, que transcendem tempo, espaço, idioma e cultura. É uma literatura que conseguiu traduzir a experiência humana de uma maneira universal e perene. Comparando com um remédio, é como se os livros clássicos tivessem um poder ativo maior. Claro que a gente trabalha também com literatura contemporânea. Até porque muitos livros que estão sendo escritos hoje devem se tornar clássicos no futuro.
Em tempos de pandemia e guerra, como o atual, a literatura tem qual papel na vida das pessoas?
Acredito que as pessoas tenham redescoberto a literatura. Ler acabou se transformando em uma forma de lidar com a solidão, o isolamento, a angústia e a incerteza. Em relação à pandemia, as pessoas tiveram também mais tempo em casa para colocar a leitura em dia. A guerra traz novamente uma situação de apreensão, de desconfiança e de ansiedade. Mas para entendê-la de uma forma mais ampla é preciso ler Dostoiévski. A literatura é uma ferramenta fundamental para compreender tudo o que está acontecendo.
Há algum tempo estudantes chegavam à faculdade com boa formação literária, em especial, os alunos de Medicina e Direito. Qual o maior desafio de divulgar a importância da literatura no processo de humanização desses profissionais em formação?
A formação, não só na Medicina, mas em outras áreas também, tornou-se mais técnica nos últimos tempos. Isso aconteceu em função do próprio desenvolvimento do conhecimento e do avanço da ciência. O efeito colateral disso foi gerar um empobrecimento, uma marginalização da formação humanística, principalmente, a fundamentada nas artes e na literatura. Acredito que o conhecimento tem de ser vasto. Por isso, defendo a literatura como instrumento na amplificação dessa visão a respeito do ser humano.
Qual é o lugar dos escritores na sociedade brasileira com cada vez menos leitores?
Apesar do brasileiro, em termos relativos, ainda ler muito pouco, sou otimista. Acredito que as pessoas estão despertando para o potencial da leitura, começando a perceber o prazer do ato. Muitas delas estão encontrando nessa experiência um remédio para esse mundo cada vez mais estreito, imediato e superficial. Acho que nosso papel, inclusive usando todo o aparato tecnológico disponível, é tentar despertar, incentivar e seduzir as pessoas para a leitura e seus benefícios em todos os sentidos.
Vivemos atualmente uma grave epidemia de problemas relacionados à saúde mental. Qual seria a melhor "prescrição" de dois livros que servem como remédio para quem sofre com as dores da alma?
Todo bom livro tem efeito terapêutico. Poderia citar diversos, mas vou escolher dois, que são bem curtinhos e extremamente positivos neste sentido da saúde mental. O primeiro é do José Saramago e se chama O Conto da Ilha Desconhecida. Parece um livro de criança, mas que tem todo um significado simbólico importante de autoconhecimento. O outro é A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, que conta justamente a história de uma pessoa que norteou toda a vida na busca do sucesso, esquecendo da coisa mais importante que são as relações humanas. Apesar de ter sido escrita em 1886, a obra é de uma atualidade impressionante.
LIVRO
A Literatura como Remédio: Os Clássicos e a Saúde da Alma
Autor: Dante Gallian
Editora: Martin Claret
216 páginas
Preço médio: R$ 42
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