Indivíduo igual, gente semelhante, da mesma raça. Em Tupi, gwaya. Tem gente que pode até nunca ter ouvido a expressão, mas é dela que surgiu o nome Goiás. Várias cidades também foram batizadas por conta dessa ligação histórica, casos de Anicuns, Aruanã e Crixás. A cultura indígena é tão importante que contribuiu para a construção da identidade do goiano, seja presente em hábitos alimentares, como o de comer mandioca, e comportamentais, traduzidos no costume de descansar na rede e no uso de plantas medicinais. Além das palavras incorporadas à língua portuguesa como pipoca, canjica e cafuné.“Absorvemos várias dessas tradições. Os povos indígenas são parte constitutiva do que nós somos. Não tem como negar essa importante herança genética, biológica e cultural. O problema é que o processo de colonização e de apagamento dos índios foi violento demais e gerou bastante desconhecimento, preconceito e menosprezo”, analisa Elias Nazareno, historiador e professor do curso de licenciatura em Educação Intercultural da Universidade Federal de Goiás (UFG). Às vésperas do Dia do Índio, comemorado na próxima segunda-feira, O POPULAR resgatou um pouco mais dessa contribuição histórica.Para a artesã indígena Patricia Naiara Kamayurá, de 35 anos, a influência do seu povo está no cotidiano de todos os goianos. Desde o uso da farinha de mandioca ao de alargadores no nariz, na boca e na orelha. O gosto pela dança, pela pintura no corpo e o jeito de fazer alguns pratos, como o peixe na folha de bananeira e a pamonha na palha são outras características herdadas da sua tribo na cidade. “A tapioca, o beiju, é o nosso prato principal na aldeia. Ela é a nossa base alimentar junto com o pescado”, acrescenta.Desde pequena, Patricia se acostumou a ver a tradição indígena virar símbolo de um Estado, caso do pequi, em tupi peke’i, que além de alimento, faz parte de importante cerimônia fúnebre da tribo onde ela cresceu no Mato Grosso. Na aldeia dos Kamayurá, no Alto do Xingu, a colheita do fruto faz parte do Quarup, ritual de despedida dos mortos com danças e lutas e convidados de dentro e fora da aldeia. “Foram muitos ensinamentos, mas agora quase não existe mais índios em Goiás”, lamenta. O Estado tem hoje três grupos, os Carajá (Aruanã), os Tapuias (Nova América) e os Avá-Canoeiro (Minaçu).Nascida em Goiânia, Patricia é filha de mãe mestiça com um índio da etnia Kamayurá. Os seus pais se conheceram na cidade ao acaso, quando vieram para estudar, se casaram e acabaram ficando na cidade. Ainda na infância, ela se mudou para a mesma tribo do pai, em Xingu, onde casou-se e teve dois dos quatro filhos. Ela retornou para a capital em 2011 para fazer o curso de Enfermagem. “Falo ao meu marido que eu quero voltar para a terra onde fui criada porque me sinto entre o chão do mundo e o chão da aldeia”, comenta ela, que ganha a vida vendendo e fazendo artesanato e na produção de moda.LazerO Rio Araguaia é sem dúvidas o principal destino dos goianos no período de férias para pescar e montar acampamento – diversão suspensa por conta da pandemia do novo coronavírus. O professor Elias Nazareno lembra que essa tradição foi também absorvida pela cultura indígena. “Há pelo menos mil anos, em julho, os carajás têm o costume de partir para os rios para pescar, tomar banho, fazer rituais e jogos”, afirma. O especialista conta que a crença dos índios diz que os homens surgiram das águas do rio, que para esta comunidade é o “berorrokan”, ou “rio grande”, em português.As bonecas carajás, por exemplo, que em 2012 foram reconhecidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial brasileiro, são feitas com argila do Araguaia. O seu processo de produção, que representa o cotidiano dos povos da aldeia, leva até um ano. Atualmente, os carajás têm uma população de aproximadamente 3 mil índios, distribuídos em quatro estados: Goiás, Mato Grosso, Pará e Tocantins. As 20 aldeias da etnia ficam às margens do rio, na altura da Ilha do Bananal. “É uma arte que ganhou reconhecimento mundial”, reforça Nazareno.Herança à mesaA culinária goiana herdou vários alimentos da cultura dos índios, como a utilização da mandioca e derivados (farinha e polvilho). O gosto por peixe e carne também fazem parte da herança, assim como outras preferências goianas, como milho, batata, pequi e palmito. Há ainda uma apropriação dos fogos usados pelas tribos e de técnicas de cocção para o preparo, como enterrar o alimento debaixo da fogueira. “Goiás tem uma cozinha de origem indígena muito forte porque ninguém melhor numa terra para falar o que pode ou não pode comer que o próprio morador”, comenta Márcio Zago, chef de cozinha e professor.Assim como boa parte da gastronomia brasileira, a goiana nasceu da mistura de três culturas: a indígena, a africana e a europeia, com a chegada dos portugueses, segundo o folclorista e escritor Bariani Ortencio, em seu livro Cozinha Goiana, publicado em 1967. Márcio Zago conta que com o tempo os pratos foram sendo transformados de acordo com o desenvolvimento da comida local. “Na pamonha incluímos o queijo, linguiça, jiló e tantas outras adaptações. O mesmo aconteceu com os vários incrementos na tapioca. Na comida de maneira geral, ampliamos o tempero”, complementa.Celebração na TVEm celebração ao Dia do Índio, a Globo exibe nesta segunda-feira o especial Falas da Terra, após o Big Brother Brasil 21. Com depoimentos em primeira pessoa, o programa mostra a riqueza cultural dos mais de 300 povos indígenas existentes no País. No esquenta das comemorações, o programa No Balaio, da TV Anhanguera, deste sábado, apresenta uma edição especial em alusão à data. A edição acompanhará o processo de criação de um mural de grafite em homenagem ao Dia do Índio, do grafiteiro Decy, que está sendo feito no Câmpus 3, da Faculdade Unida de Campinas (FacUnicamps), no Setor Coimbra. Já o Jornal do Campo trará um especial sobre cerimônias indígenas. Dividido em duas partes, a primeira exibida neste domingo e a segunda no dia 25, o programa abordará o ritual de passagem do jovem índio (jyré) para a fase adulta, entre outros costumes.Nas artes plásticasNa obra de Antonio Poteiro (1925-2010), as tradições dos povos indígenas aparecem com frequência graças ao período de três anos que o artista passou na ilha do Bananal com os carajás na década de 1950. Essa experiência foi antes de ele fixar residência em Nerópolis e depois Goiânia. Ele passou uma temporada na aldeia para aprender técnicas de cerâmica e quando começou a pintar em tela, em 1972, fez registros da cultura dos índios, como a série da lenda da mandioca. “Meu pai fez 20 quadros e eles estão no Japão com colecionador”, conta o pintor Américo, filho de Poteiro.A lenda da mandioca conta a história de Mani, uma pequena índia, alegre e feliz, amada pela tribo Tupi-guarani, onde vivia. Ela era diferente dos outros índios, era branca, neta do grande cacique da aldeia. Em uma manhã, ela amanheceu morta. Inconsolada, sua mãe a enterrou dentro da Oca onde vivia e ali chorou dia e noite. O deus Tupã, para aliviar seu sofrimento, abençoou o local e dali nasceu uma planta florida, de raiz branca. “Meu pai ficou encantado”, lembra Américo. Vários goianos beberam da cultura indígena, como Siron Franco, Alessandra Telles e Iza Costa.Inspiração literária As culturas indígenas foram historicamente matéria-prima para a literatura brasileira. É o caso da obra da escritora, pesquisadora e ilustradora Ciça Fittipaldi, referência no assunto e professora da Faculdade de Artes Visuais da UFG. Boa parte dos seus trabalhos foram criados após experiências em aldeias, exemplo da premiada série de oito livros Morená, publicada nos 1980 e que conta histórias e curiosidades dos povos Kamaiurá, Nambiquara, Bororo, Carajá, Saterê-mauê, Tukano, Yanomami, Macuxi, Taurepang e Arecuna. “Conheci várias etnias e nos últimos anos senti a necessidade de ajudar na publicação de autores indígenas e estimulá-los a publicar”, conta ela, se referindo ao título Arte Iny Karajá - Patrimônio Cultural do Brasil (2019), produzido com patrocínio do Iphan.-Imagem (Image_1.2235008)-Imagem (Image_1.2235025)-Imagem (Image_1.2235027)