“Eu fracassei. Sou o fracasso de tudo aquilo que esperavam que eu fosse. Não sou homem, nem sou mulher, sou travesti”. O trecho é do poderoso discurso de Lina Pereira, também conhecida pelo nome artístico Linn da Quebrada, que apresentou a sua trajetória e identidade de gênero ao público e aos outros participantes do Big Brother Brasil 22 no último dia 17. Ao final de sua fala, Lina foi aplaudida. Os dias que se seguiram, no entanto, evidenciaram algumas das muitas formas de violência que fazem parte do cotidiano da população trans e travesti.Após ter a identidade de gênero desrespeitada por mais de uma vez, a participante demonstrou seu incômodo ao responder a participante Eslovênia, que a chamou de “amigo”. “Amiga, não dá mais para ficar errando”, apontou Lina. O apresentador Tadeu Schmidt deu a palavra à cantora para que ela explicasse ao vivo o significado de sua tatuagem e reforçasse o uso correto dos seus pronomes. Para quem não sabe, Lina tem o pronome “ela” tatuado na testa.Há quem não entenda o porquê de tanto alarde sobre o ocorrido. “É só corrigir” e “ela está aprendendo” estão entre as justificativas para o erro. Quem erra, no entanto, grande parte das vezes se encontra na posição de alguém que nunca precisou entender o impacto que o desrespeito aos pronomes corretos possui para pessoas que lutam diariamente por inclusão e direitos - e a grande conquista que é ter a sua identidade de gênero (ou seja, o gênero com o qual uma pessoa se identifica), seu nome social e, consequentemente, seus pronomes reconhecidos pela sociedade.“Todo o nosso trabalho caminha em prol de criarmos novas possibilidades de sermos e estarmos no mundo. A indignação contra esse tipo de violência é fundamental e deve existir para além das redes sociais”, diz parte da nota publicada pela equipe de Lina após a repercussão dos episódios. O POPULAR convida pessoas trans para contar as suas histórias e compartilhar opiniões sobre os assuntos que permeiam o Dia da Visibilidade Trans, data presente no calendário nacional há 18 anos como um dia de reivindicação de lutas e celebração de direitos.Um corpo no mundo "Meu nome é Rafaela Lincoln, tenho 27 anos e faço aniversário exatamente neste 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans. Sou DJ, rapper e trabalho como bartender. Me considero uma 'artevista', porque faço da minha arte política e da política arte". Sob o pseudônimo AnarkoTrans, Rafaela já se apresentou em dezenas de festivais, eventos e casas da capital, cidade de Goiás, Brasília, Estado do Pará e é uma das atrações confirmadas da próxima edição do Festival Vaca Amarela, previsto para abril deste ano. O nome representa a junção do seu trabalho artístico com a militância política, que sempre foi muito presente em sua vida. "Anarko vem de anarquia e Trans, obviamente, vem de transgênero ou transexual, que significa 'o outro lado' do que seria essa norma hétero-cis de gênero que a gente vive. As pessoas trans transcendem o gênero delas e transformam o que elas foram construídas para ser da forma que elas acreditam para, assim, se reconstruir cotidianamente", explica.Quando entrou na universidade no ano de 2012, aos 17 anos, ainda se reconhecia como Rafael. "Na época, me reconhecia enquanto menino gay. Os primeiros anos foram um período de muita politização para os jovens da minha idade naquele ambiente. Foi nessa época que entendi o que era gênero e raça, que me reconheci enquanto pessoa preta e, a partir do ENUDSG - Encontro Nacional em Universidades sobre Diversidade Sexual e de Gênero, que ajudei a organizar em 2015, me reconheci enquanto pessoa trans. Foi durante o evento que me assumi pela primeira vez como Rafaela Lincoln", conta.Sobre as pautas em voga no Dia da Visibilidade, ela aponta a exclusão da população trans do mercado de trabalho como a principal. "Falta acesso e faltam oportunidades. Quais são as empresas que contratam pessoas trans?", indaga. Em seguida, ela destaca o reconhecimento do gênero das pessoas trans como pauta urgente. "E aqui falo principalmente sobre a mudança do nome de registro. Falta informação e orientação sobre a retificação em cartório", comenta. Ainda assim, a data é também motivo de celebração para Rafaela. "É um dia de luta, mas comemoro por ser o meu aniversário e por estar viva, já que a expectativa de vida de pessoas trans hoje é de 35 anos de idade no Brasil. É o país que mais mata pessoas trans no mundo e o que mais consome pornografia também", aponta.Aquele que traz a luz"Eu me chamo Luca Hanie Alves Ferreira e tenho 26 anos. Eu mesmo escolhi o meu nome, Luca, olhando significados na internet, que significa 'aquele que traz a luz'. Já o meu segundo nome, Hanie, é de origem árabe e significa 'alegria'. Esse veio do meu nome antigo, de batismo, que resolvi manter por gostar muito do significado e origem dele". Luca é tatuador, ilustrador, escreve projetos culturais e estudante de artes visuais. "Sou artista e uma pessoa trans não-binária agênero. Ou seja, quando eu nasci, fui designado em um determinado gênero, mas com o meu crescimento fui percebendo que as concepções de gênero que nos apresentam desde sempre e que são quase uma regra rígida e binária, homem ou mulher, não me representam e eu não cabia dentro", conta. Em 2015, Luca conseguiu pela primeira vez dar nome ao que sentia diferente nele, que era a transexualidade. "Desde então, resolvi traçar meu próprio caminho construindo e me apropriando de signos, comportamentos, atributos e expressões socialmente atribuídos à masculinidades e feminilidades. Uso pronomes ele, elu, dele, delu", explica. Na época com 19 anos, assistiu a um vídeo chamado Relatos de um Homem Trans, narrado por Jordhan Lessa. "Cada palavra que entrava nos meus ouvidos era um abraço de identificação. Na época, eu nunca tinha ouvido falar sobre não-binariedade. Eu sabia que eu não me identificava como mulher, então a única outra possibilidade que eu conhecia era a de ser homem. Acabei me colocando dentro dessa caixa de homem por muito tempo", conta.Desde o primeiro contato com o que seria a transexualidade, aos 19 anos, Luca sonha em conseguir custear a mastectomia (cirurgia de retirada das mamas) e atualmente está com uma rifa aberta para tentar. "Na verdade, acho que muito antes de eu sonhar em saber que eu era trans, já me imaginava sem elas. Mas hoje, pela minha aparência, ter mamas me apresenta um risco em lugares públicos, por causa de pessoas preconceituosas, além de me restringir de vários tipos de atividades, como ir ao clube, fazer natação, ir à praia sem camiseta, praticar algum esporte com roupas de esporte", comenta. Em pleno mês da Visibilidade Trans, Luca considera a participação de Linn da Quebrada no BBB 22 como uma conquista importante. "Acho que é a primeira vez na televisão brasileira que a gente tem uma representação de uma travesti da forma correta, com a vivência dela sendo contada por ela mesma. Qual foi a última vez que você viu uma pessoa trans de forma positiva em alguma novela, algum programa de televisão ou em algum jornal antes das 22 horas? Na parte do dia, a gente ouve muito em jornais sensacionalistas coisas como 'travesti é morta a pauladas', ou 'travesti envolvida com tráfico' e 'travesti é presa', sempre algo que reforça o estereótipo de periculosidade das identidades travestis e que joga essa população cada vez mais pra margem", aponta."Mas vocês não me ensinaram"A frase já virou até meme na internet. A justificativa para os erros constantes levanta um dos inúmeros debates no que diz respeito a direitos, inclusão e respeito à população trans: o de que as pessoas cis precisam ser ensinadas sobre como se portar. "Sinceramente, há quem tenha mais paciência e mecanismos para ser didática e ter falas mais pedagógicas. Mas, parafraseando a Linn no dia em que sentou no gramado com os outros participantes para conversar sobre; para eu poder ensinar todas essas pessoas com leveza, me custa muito caro, e o preço é a minha saúde mental", comenta Luca.Rafaela não entende erros frequentes como os que estão acontecendo na casa do BBB 22 como mera questão de falta de informação ou de não terem sido ensinados ao longo da vida. "A Linn tem o pronome 'ela' literalmente tatuado na testa e, mesmo assim, existem pessoas que insistem em tratá-la no gênero masculino. Não acredito que seja ignorância no sentido de falta de informação. Existem pessoas que não tiveram acesso à universidade, que não possuem acesso a internet e que sabem como tratar uma travesti", comenta. "E mesmo que as pessoas que estão ali não tenham tido acesso a essa informação, é uma questão de dialogar. As pessoas vão te explicar como elas querem ser tratadas. Acho que é uma questão de transfobia e que não é nem velada, porque essas pessoas querem que outros transfóbicos concordem com eles, riam da situação", completa.Pandemia e vulnerabilidadeAs implicações da pandemia para a população trans abrangem diversos âmbitos. O trabalho da Astral, ONG voltada para o desenvolvimento de políticas de inclusão de transgêneros, transexuais e travestis em Goiás, foi se alterando a partir da urgência de demandas da população atendida pela organização, como conta a psicóloga e presidente da ONG, Beth Fernandes. "Houve um empobrecimento da população, principalmente no primeiro ano de pandemia. Artistas ficaram sem se apresentar, profissionais do sexo foram impedidas de trabalhar nas ruas. Essa parcela nos procurou principalmente em busca de cestas básicas, porque ficaram em situação de fome. Entregamos aqui em Goiânia mais de mil cestas", comenta. Os eventos promovidos pela ONG não aconteceram desde o início da pandemia para não provocar aglomerações. Para o Dia da Visibilidade Trans de 2021, por exemplo, eles produziram vídeos de campanha. Os atendimentos à população seguiram, entre eles o auxílio na retificação do registro civil. Entre as pautas levantadas pela pandemia, no entanto, a questão da saúde mental é falha, segundo Beth. "Avançamos na questão da vacinação, que garante a saúde física e biológica das pessoas, mas a saúde psicológica da população ficou esquecida", aponta. Entre as demandas da ONG, grande parte foi ocasionada pelo isolamento social e do convívio forçado entre pais e filhos dentro de casa. "Aqueles pais que fingiam não ver ou não estavam dispostos a lidar com a identidade de gênero de seus filhos, na pandemia não tiveram opção. Tivemos muitos atendimentos de pais e filhos que não conseguiram fugir mais", conta. Essa não aceitação da identidade de gênero dos filhos geraram consequências graves e casos de violência. "Encontrei com pessoas que foram morar na rua porque o pai espancava a mãe com a justificativa de que ela deu um filho como eles, pessoas trans. Tivemos aumento da violência doméstica, adoecimento mental dessa população", aponta. Ações de visibilidadeA psicóloga e presidente da ONG Astral - Goiás, Beth Fernandes, aponta 2022 como um ano crucial na luta por direitos da população trans. "É um ano de política, de eleições. Um ano que temos outras perspectivas. Pensando na importância da cultura e arte, principalmente no período da pandemia, vamos inaugurar o projeto Café Talento junto ao Fundo Elas, voltado para mulheres transexuais, travestis e lésbicas. Serão várias oficinas para pensar o talento das pessoas, com demanda vinda da própria população, seja artesanato, costura, bordado, culinária", explica.Nos últimos meses, a equipe da Astral começou a articular a adaptação de outras ações realizadas anteriormente a fim de evitar contágio de Covid-19, como a entrega do autoteste de HIV, que ocorre neste 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans. A Astral fica na Avenida Anhanguera, 5389, sala 605, no Centro. A Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas (SMDHPA), por meio da Superintendência LGBTQIA+, está promovendo ações em comemoração ao Dia da Visibilidade Trans desde o último dia 27 em parceria com a Rede Trans Brasil. A programação contou com atendimento e serviços públicos direcionados à população trans e travesti de Goiânia, além de contar com cursos profissionalizantes e iniciativas culturais. Neste sábado (29), ocorre o encerramento das atividades com apresentação do grupo Cabaré das Divas, no Centro Cultural Goiânia Ouro. A entrada é gratuita.