Lá vai Fabiano, “sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro”. Lá está Sinhá Vitória, “queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam”. Lá vai a fiel cadela Baleia, “arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam”. Lá se vão as vidas secas de um sertão inclemente, de fome, de sede, de resiliência.E lá se vão 80 anos que Graciliano Ramos lançou uma obra que há muito deixou de ser um livro como os outros. Vidas Secas é um marco em muitos sentidos. No século 20, está entre os principais trabalhos literários do Brasil. No âmbito da chamada Geração de 30, que reuniu escritores do Nordeste em torno de um regionalismo árido e encantado, foi o ápice. No tempo que lhe sucedeu, tornou-se um trabalho que influenciou pelo rigor formal, pela reelaboração do realismo, pela maneira especial de unir paisagens naturais a geografias humanas.Nas costelas aparentes da família de retirantes que foge da seca e perambula por terras que fornecem tão pouco para o sustento, por estradas que mergulham na desolação, Graciliano Ramos revolucionou o imaginário do sofrimento. E fez isso tomando o caminho mais áspero e difícil. O autor alagoano que começou a publicar depois dos 40 anos de idade poderia fazer um retrato meramente descritivo do sofrimento que ele conhecia bem. Não, ele preferiu investir nos dramas universais que acompanhavam aquelas pessoas sem identidade, sem destino, sem esperança.Fabiano é uma criação literária rara. A sobrevivência e a ética estão, a todo momento, em iminente conflito em seus atos, em suas reações, em seus pensamentos. Mas aqui falamos da ética sertaneja, aquela que não admite falhar na proteção dos seus, que não permite fraquejar, que busca enfrentar a natureza – por mais hostil que ela possa ser – de frente, sem abaixar a cabeça, sem se queixar ou maldizer a vida a todo momento. Ao topar com ele, Euclides da Cunha poderia confirmar, de boca cheia, sua impressão expressa em Os Sertões: “Fabiano, és, antes de tudo, um forte”.E Sinhá Vitória é antes de tudo uma sobrevivente. Sobrevive à condenação a um casamento infeliz, a ter de criar seus filhos em meio às maiores privações, abrindo mão de sonhos já tão modestos. Sobrevive ao ver a desgraça invadir sua família e a si própria, quando descarrega em pequenos gestos de violência, as frustrações que coleciona. Seu bote no pescoço do papagaio, que ela mata para comer e arrependendo-se disso mesmo antes do ato, é a expressão de uma truculência a que é obrigada a se submeter e a praticar. Sinhá Vitória, a mulher que abriga tantas derrotas.Com essas ironias finas, Graciliano Ramos manifestava suas preocupações sociais, traduzia suas críticas mais profundas e dedicava sua admiração a um povo ao qual pertencia, sem ignorar dinâmicas que o trucidavam e tragédias que os moldavam. O cenário nordestino que serviu de referência para filmes, que foi transposto para telas famosas, que revelou um Brasil que já era conhecido, mas não sob tal ângulo. A seca e as vidas que ela devasta incorporam-se, com o livro de Graciliano Ramos, ao imaginário básico de nossa criação. Não poderíamos mesmo ser os mesmos depois dele.