Nascido em Goiânia há 71 anos, o indigenista Wellington Figueiredo, antes de passar em um concurso da Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1974, só conhecia as matas dos arredores da capital goiana. Depois de décadas trabalhando com comunidades indígenas, sobretudo com grupos isolados na Floresta Amazônica, ele aprendeu que é possível manter com a natureza e com as outras pessoas outros tipos de relação social que não têm apenas o dinheiro como prioridade. Neste 19 de abril, Dia do Índio, o POPULAR traz uma entrevista com esse goiano que ajudou a moldar as políticas públicas nacionais para a área. Nessa conversa, Wellington, atual morador de Alto Paraíso, traz as lembranças de quando atuou junto a tribos que não tinham contatos com os homens brancos em diferentes Estados, como Amazonas e Pará, e aponta para erros que estão sendo cometidos atualmente nessa seara. Ele critica projetos que tentam “integrar os indígenas na marra” e afirma que a Funai, onde se aposentou, continua relevante para a sobrevivência de vários povos, mas que está “fragilizada”. Pai de três filhos – dois deles com nomes indígenas –, Wellington alerta que muitos povos da floresta estão sendo exterminados.Quando começou a trabalhar com questões indígenas?Foi em 1974. Eu fazia Engenharia e tinha voltado de uns jogos universitários. Vi um anúncio no jornal: concurso para a Funai. Eu disse: vou fazer isso. Nem falei para ninguém porque era um choque para a família, largar os estudos e ir para o mato. Aquela vontade de aventura. Tranquei matrícula para ficar dois anos. Esses dois anos foram até me aposentar. Como foi sua primeira experiência com um povo indígena?O primeiro lugar para onde fui designado foi na fronteira do Brasil, Peru e Colômbia, região de Letícia, Tabatinga. Fui trabalhar com os índios ticunas, grupo grande do Alto Solimões. E ali já começou a mudar sua visão de mundo?Isso foi acontecendo no decorrer do tempo, a compreensão dos problemas. Em 1970, a Funai tinha começado a profissionalização das pessoas para trabalhar com os indígenas. Os ticunas eram um grupo com dezenas de anos de contato, de aproximação, mas que vivia muito sob a tutela dos “patrões”, o pessoal da região que explorava os indígenas. Os patrões geralmente controlavam a boca do igarapé e impediam que os indígenas comercializassem, que tivessem saída dos lugares. Essa experiência foi uma época boa. m quais outras regiões você atuou?A região do Solimões também tinha grupos isolados do Vale do Rio Javari, que compreende o Javari, na fronteira com o Peru. Eu sempre tive vontade de trabalhar com os indígenas isolados. Na época, tinha muita gente que transitava na região e tive essa oportunidade. Dali fui trabalhar com os matis, que são daquela região e era um grupo de recente contato. Tive experiência também com os marubos, da cabeceira do Rio Quixito. Daí para frente deixei de trabalhar com aqueles que já tinham aproximação com os brancos e me dediquei aos indígenas isolados. Nesse trabalho com os indígenas isolados, qual é o grande desafio?Na minha época, não havia uma política definida com os indígenas isolados. Se havia a necessidade de construção de uma hidrelétrica, era preciso fazer a aproximação para que esse desenvolvimento da nossa sociedade não encontrasse empecilho. Na época, aquela região tinha muito trânsito de exploração da Petrobrás, de uma companhia que fazia o levantamento de minerais. O sertanista era utilizado mais para isso: fazer os contatos com os indígenas para que o caminho ficasse livre para as explorações de nossa sociedade. Em 1986, essa política mudou. Mas os envolvidas nesse trabalho questionavam: para que fazer aproximação com esses grupos? O pessoal vive lá tranquilamente, tem sociedade organizada, capaz de satisfazer os indivíduos. Você montou um grupo especializado em indígenas isolados dentro da Funai?Eu participei disso. O grande responsável por tocar isso para frente foi o Sidney Possuelo, com quem eu trabalhei e que é reconhecido por dar esse start numa nova política com os indígenas isolados. Essa política diz que só se faz contato com os indígenas isolados se eles estiverem sob risco. Se não for o caso, é melhor deixá-los lá. Essa política se espalhou pela América toda. Como é essa política hoje?Sempre teve dificuldades, mas hoje, pelas informações que eu tenho, apesar de ainda haver essa política, ela está muito mais voltada para satisfazer os interesses da nossa sociedade do que proteger os indígenas isolados. Falta recurso, falta pessoal e não existe sensibilidade com esses povos, que estão lá na deles, tranquilos, não precisam de nada da gente, sendo capazes de sobreviver por si mesmos. Há milênios que fazem isso. Você não dá oportunidades de as pessoas viverem como querem, da forma que se sentem bem. Quantas comunidades isoladas ainda há na Amazônia?Quando iniciamos esse trabalho, em 1988, levantamos que havia cerca de 120 grupos na condição de isolados. Depois foram feitos alguns trabalhos e hoje não sei exatamente quantos grupos que ainda são tidos como isolados, mas eu sei que são mais de 80. Não são mais grupos grandes, como os que existiam com 500, 600 pessoas. Isso não tem mais. Esses grupos são pressionados pelo avanço de nossa sociedade. Para sobreviver tiveram de se subdividir, ou então, devido à grande pressão, reduziram o número de indivíduos. Isso acontece porque você diminui a área de caça, de pesca, de coleta e muitas vezes eles são sujeitos a perseguições. Os índios guajá estão nessas condições, como tribos do Vale do Rio Pardo. Em Rondônia, existem grupos pressionados também. Eles não podem mais se fixar em um lugar porque precisam estar correndo de fazendeiros, garimpeiros. Nessa correria, como se cria filhos, como os velhos sobrevivem? Está sempre no espanto. É uma tragédia. Nós, com tanta tecnologia, somos incapazes de perceber que são pessoas como a gente, que choram, têm pai, mãe, filho. São grupos sob intenso risco de desaparecer?Sim, de extermínio de pessoas. Isso existe em outras partes do mundo, mas a diferença é que os embates nas sociedades modernas são mais ou menos equilibrados. Todo mundo tem pólvora. Mas e com os indígenas? É a pólvora contra o arco e a flecha. Só a fuga é capaz de dar sobrevivência. Dos piripkura, só sobraram dois homens. O Índio do Buraco, em Rondônia, é um apenas. Ele não nasceu de bananeira nem caiu do céu. Ele teve pai, mãe, filho, irmãos. Era uma sociedade e houve um extermínio. Acabou. Desaparecem os indivíduos, desaparece a cultura. As pessoas não parecem ter muita empatia com esses grupos.Acho que falta saber da situação. No Brasil, a gente estuda que os índios têm um cacique, um pajé, mas não passam conhecimento sobre esses povos. Eles são pessoas iguais a gente. A diferença é a forma de estar nesse mundo. Falta na História do Brasil um reconhecimento disso e um novo despertar para esses povos. São gente. A impressão que se tem é que essa situação já dramática tem se agravado mais recentemente, com projetos de garimpo em terras indígenas, extração de madeira. Você tem essa percepção?Ah, sim. Isso é notório. A ocupação do Brasil, no início, se deu com os caras que não tinham trator, motosserra, avião. Esse caminho do litoral para o Oeste foi muito lento. Mas, de 1970 para cá, isso foi muito rápido. Hoje você tem maquinário adequado para andar na mata. Vai tirar uma madeira, ninguém precisa cortar o pau, jogar num igarapé e esperar a chuva. Você entra com o trator e pronto. Hoje é mais dramático porque o rio, a serra, a mata já não são mais empecilhos naturais. Como você avalia o papel da Funai nesse contexto?Precisamos fazer uma leitura histórica. A Funai foi e é importante. Como instituição, ela garantiu a sobrevivência de muitos povos indígenas. No mundo, o Brasil é destaque nesse sentido. A Funai, bem ou mal, cumpriu seu papel. Mas agora é um órgão fragilizado, está maneta. Sempre falta dinheiro, gente qualificada. Nesse governo, não há uma política para defender os indígenas e sim para integrá-los na marra e avançar sobre a terra deles, como se fossem empecilhos ao desenvolvimento nacional. Isso é balela. São incapazes de ver uma pessoa e deixá-la viver da forma que quiser. Por que ela tem de gastar igual a mim, andar igual a mim, vestir igual a mim? É essa falta de respeito. Respeitar o outro, só isso. E há algo positivo acontecendo para os indígenas?Esse momento dos indígenas é muito importante, grupos que estão se sobressaindo na autodeterminação. Isso é importantíssimo e acho que vai garantir a sobrevivência deles como cultura. Claro que as transformações ocorrerão, mas esses grupos estão muito organizados e isso é muito bom. São sociedades que têm um comportamento colaborativo muito diferente do nosso. Isso será marcante e servirá de exemplo para nossa sociedade.