Com 1.336 habitantes, Cachoeira de Goiás é uma das menores cidades do estado. Ao sair da GO-417 e entrar nas ruas do município em direção ao Centro, o visitante encontra cenário comum ao interior, com uma igreja católica em uma praça bem cuidada, cercada pelos principais prédios públicos, como a prefeitura, secretarias e Câmara de Vereadores. No caso, é a Paróquia Divino Pai Eterno, na Praça Orozimbo Vieira de Souza.No entanto, há cerca de uma semana, outros elementos mudaram a paisagem. A cidade se preparou para realizar sua tradicional festa católica pela 134ª vez. Um palco com painel de LED e som foi montado ao lado da prefeitura para receber apresentações de artistas entre os dias 24 de junho e 3 de julho, e nas principais ruas foram montadas barracas para abrigar comerciantes.Na lista de convidados estavam cantores sertanejos e um DJ, mas os shows foram cancelados após a juíza Bianca Melo Cintra conceder liminar ao Ministério Público de Goiás (MP-GO), no dia 23 de junho. Este foi o início do processo que levou à redução de 74% no custo do evento.Na ação civil pública, o promotor Ricardo Lemos Guerra alegou que o gasto de R$ 755 mil de verba pública da Prefeitura de Cachoeira na festa era “desproporcional e injustificável”, em um cenário em que o município estaria deixando de cumprir obrigações em serviços essenciais (o principal argumento foi em relação à necessidade de fornecer merenda escolar adequada). Se os contratos não tivessem sido suspensos pela decisão judicial, a festa poderia custar R$ 565,53 por habitante.Leia também:- Após 2 anos, temporada do Araguaia deve receber 1,5 milhão de turistas- Justiça proíbe mais uma prefeitura de repassar verba para show em Goiás- Prefeitura de Goiânia contrata sem licitação para realizar eventosO prefeito Geraldo Neto (sem partido) tentou recorrer da decisão, argumentando que houve rescisão de três shows e revogação de dois pregões, com a redução do valor total do evento para R$ 540 mil. Neto disse também que a prefeitura já havia pagado R$ 310 mil em despesas (a liminar determinou obrigatória devolução de valores eventualmente já pagos), e que tinha R$ 2 milhões em caixa. O pedido de liberação dos shows foi negado pelo desembargador e presidente do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), Carlos Alberto França, na terça-feira (28).“Não se olvida da importância dos eventos festivos e do direito ao lazer, alçado ao patamar de direito constitucional, contudo, reitere-se, o valor despendido com a organização do evento afigura-se desarrazoado frente ao atual cenário econômico e de saúde, bem como ao número de habitantes do município de Cachoeira de Goiás”, afirmou França na decisão.Nesta sexta-feira (1º), a realização de shows foi liberada pelo desembargador Maurício Porfírio Rosa. No entanto, o custo do evento foi reduzido para R$ 190 mil (queda de 74%). As apresentações serão realizadas pela Paróquia, sem vínculo com recursos públicos, pois foram doadas pelos artistas. O MP-GO tentou reverter a decisão, mas o pedido foi negado. Até o fechamento desta edição, a realização de shows por meio da igreja estava liberada.RealidadeO entendimento de que há disparidade entre o tamanho do município e o valor que a prefeitura planejou gastar com o evento também é compartilhado por quem vive na cidade. “É um investimento muito grande para uma cidade do tamanho de Cachoeira. Vejo que deveria ser liberado a festa, mas com shows que não tivessem uma estrutura desse tamanho. De segunda a quarta-feira não tem movimento grande. É maior mesmo a partir de quinta”, disse um homem que mora na cidade há mais de 30 anos e pediu para não ser identificado. O morador fez a declaração na quarta-feira (29), quando a reportagem esteve no município.Em Cachoeira, a maior parte das ruas são asfaltadas, mas a sinalização de trânsito vertical e horizontal é precária ou inexistente. E é na periferia onde estão os principais problemas. Em bairros como Vila Progresso e Conjunto Paraíso II e III, há ruas em que asfalto ainda não chegou e moradores reclamam que falta água com frequência. A distribuição é responsabilidade da prefeitura, que não cobra pelo serviço. A cidade ainda não tem rede de esgoto, e cada residência tem uma fossa no quintal.“O prefeito diz que o dinheiro do asfalto está na conta. Depois diz que está tudo embargado. Não acho errado ter festa, mas cadê o asfalto daqui? Tem mais de dois anos que estou esperando”, questiona uma moradora de bairro da periferia. “Falta estrutura. A prefeitura só ajeita a praça e a iluminação”, diz outra moradora. Há também reclamações quanto à falta de medicamentos na farmácia da Unidade Básica de Saúde (UBS).Educação Por meio de outra ação civil pública, o MP-GO conseguiu uma liminar que determinou que Cachoeira “forneça, de imediato, diária e ininterruptamente, alimentação escolar saudável e adequada a todos os alunos matriculados na pré-escola e no ensino fundamental da rede municipal”. A cidade tem duas escolas públicas, uma estadual e a outra do município, que se chama Centro Educacional Municipal Gente Miúda e tem cerca de 140 alunos.Na ação, o promotor afirmou que os estudantes estavam recebendo como merenda bolachas e suco, ou leite. Segundo o MP-GO, a informação chegou por denúncia anônima, e foi constatada em visita ao local. Ainda de acordo com o Ministério Público, uma nutricionista afirmou que a modificação do cardápio foi solicitada pelo prefeito. Para diminuir despesas, Neto teria orientado usar mais preparações que levam farinha e macarrão e diminuir a compra de arroz.Quando a reportagem esteve em Cachoeira, os alunos da escola já estavam de férias. Moradores relataram que houve casos em que crianças receberam bolachas na merenda, mas no geral, a alimentação na escola é diversificada. Entre os exemplos citados estão sopa e arroz.FGM vai pedir audiência no MP-GO para discutir açõesAs recentes ações do Ministério Público de Goiás (MP-GO) para suspender shows em cidades goianas deve ser tema de audiência com representantes dos prefeitos. O presidente da Federação Goiana dos Municípios (FGM), Haroldo Naves (MDB), conta que pedirá encontro para discutir o tema com o procurador-geral de Justiça, Aylton Flávio Vechi.Naves diz que respeita a autonomia de cada promotor, mas argumenta que os shows movimentam a economia das cidades por meio de toda a cadeia de turismo. O presidente avalia que é necessário também discutir outros formatos de evento, inclusive com a participação da iniciativa privada, mas pondera que este cenário não faz parte da realidade de parte dos municípios.Além de Cachoeira de Goiás, São Miguel do Araguaia, Cachoeira Alta e Caldas Novas foram alvo recentemente de ações que levaram a decisões judiciais que impediram as prefeituras de pagar por shows. Segundo Naves, o entendimento da FGM é de que cada município tem autonomia para definir suas despesas. “Quando há suspensão abrupta, há prejuízo. A medida não traz absolutamente nenhuma economia para município, está trazendo prejuízo”, diz.Em São Miguel, o MP-GO alegou que a despesa ultrapassaria R$ 1 milhão, mas destacou a existência de pelo menos 13 shows patrocinados pela prefeitura cujos contratos não foram localizados. O promotor Rafael Correa Costa classificou os gastos como excessivos e incompatíveis com a realidade financeira da cidade. A decisão judicial foi publicada na quarta-feira (29) e é relacionada aos eventos Expoagro SMA, que começou no mesmo dia, e ao Carnaraguaia, previsto para o segundo semestre.Prefeita de São Miguel, Azaíde Donizetti (PP) disse que recorreu da decisão e espera resultado favorável. Ela argumenta que os eventos têm participação financeira do estado, de emendas e de empresários. Não havia nova movimentação pública no processo até o fechamento desta edição.Em Cachoeira Alta, uma decisão judicial publicada no dia 13 de junho proibiu a prefeitura de gastar R$ 1,5 milhão com shows nos eventos Juninão do Trabalhador e na festa de aniversário da cidade. O primeiro foi realizado de forma parcial neste mês e o segundo deve ocorrer em setembro. Já Caldas Novas, uma investigação nas contas do município realizada em 2017 impediu a realização do Caldas Arraiá Fest 2022 em junho. O evento foi adiado para agosto.O MP-GO também investiga a contratação de show em Mundo Novo por R$ 118 mil. O processo foi iniciado após reportagem publicada pelo POPULAR.De acordo com o MP-GO, o promotor de Justiça que está conduzindo a investigação determinou o envio de ofício à prefeitura solicitando documentos referentes à contratação de duas duplas, além de todos os documentos referentes aos gastos diretos e indiretos para a execução dos shows.À Câmara de Vereadores foi solicitada cópia de todas as atas de sessões em que o tema foi discutido. Os prazos foram de 10 dias e ainda não venceram.-Imagem (Image_1.2483624)