Ao adotar metáforas de guerra para enquadrar o novo coronavírus como ‘inimigo’, o governo de Jair Bolsonaro transforma uma questão de saúde pública em questão de defesa, o que se reflete na troca de dois ministros da Saúde, ambos médicos, por um general que segue como interino, além da substituição de quadro técnico de civis por oficiais militares. A análise é de Matheus Hoffmann Pfrimer, professor de relações internacionais na Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutor em geografia política pela Universidade de São Paulo (USP), e Ricardo Barbosa Jr., mestrando em geografia na Universidade de Calgary, Canadá, bacharel em relações internacionais pela UFG e em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC- Goiás). Nesse discurso, a China é apontada como “ameaça externa”.Co-autores do artigo A guerra do Brasil a Covid-19: Crise, não conflito - Médicos, não generais, publicado na Dialogues in Human Geography (Diálogos em Geografia Humana) - https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/2043820620924880 -, eles responderam, também juntos, às questões enviadas pelo POPULAR.Em recente publicação científica, os senhores apontam que a pandemia no Brasil tem sido tratada pelo governo como uma “guerra contra a Covid-19”, recorrendo a metáforas sobre o “inimigo invisível” e substituindo quadros técnicos do Ministério da Saúde por militares. Que análise política fazem a partir dessa constatação?As metáforas de guerra não são uma coincidência ou usadas por acaso. Termos militares expressam sentimentos de urgência, prioridade e sigilo. Ao enquadrar o vírus como um ‘inimigo’, a pandemia passa a ser vista como um ‘conflito’, não como uma ‘crise’; o que transforma uma questão de saúde pública em uma questão de defesa. A resposta do governo Bolsonaro à pandemia da Covid-19 passa a ser guiada pela racionalidade militar. Como resultado, as autoridades de saúde são subjugadas às autoridades militares. Em outras palavras, o discurso de segurança se torna uma prática de segurança.O uso de metáforas de guerra para enquadrar a pandemia permite que o governo Bolsonaro justifique a troca de pessoal técnico por oficiais militares. Conforme relatado pela imprensa, pelo menos 13 oficiais militares foram nomeados para cargos estratégicos no Ministério da Saúde, anteriormente ocupado por civis. Desde que nossa intervenção foi escrita no final de março, dois ministros da Saúde, ambos médicos, foram destituídos durante a pandemia, deixando um general como ministro interino da Saúde. Um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro (deputado federal Eduardo Bolsonaro) falou em “vírus chinês” em rede social e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, também usou rede social para insinuar que a China poderia se beneficiar, de propósito, da crise mundial causada pelo coronavírus. Isso seria parte do “discurso de guerra”?Sim, quando se utiliza termos militaristas, como ‘guerra’ e ‘inimigo’, é necessário criar referência para aquilo que ameaça a segurança. O termo ‘invisível’ é vago e utilizado para disfarçar os efeitos internos visíveis da pandemia e a incapacidade do governo de oferecer respostas contundentes às vidas perdidas pela doença e a necessidade de assistência social e de saúde pública.Assim, ao dizer que o vírus ‘é chinês’, o ‘inimigo’ que antes era ‘invisível’ ganha referência. O discurso do governo direciona a percepção da ameaça a um ‘inimigo’ e local específicos: a China – um país distante e em outro continente. Responsabilizar um ‘inimigo’ distante permite construir a percepção de que a ameaça ‘é externa’ a fim de criar a noção de estabilidade econômica e paz internas. Os discursos bélicos distorcem a nossa percepção do espaço e do tempo para suscitar os sentidos de pertencimento e de estranhamento.Em suma, a China é apontada como inimigo para produzir uma noção de paz e segurança ‘interna’ ao associar a Covid-19 a uma ameaça ‘externa’. O presidente dos EUA, Donald Trump, tem culpado a China pela propagação do novo coronavírus, ameaçando romper recente acordo comercial, o que poderia favorecer o Brasil, que tem no país asiático seu maior parceiro no comércio exterior. Porém, o discurso brasileiro se alinha ao de Trump. Como interpretam a dinâmica atual dessas relações?A política externa do governo Bolsonaro adotou a diplomacia do alinhamento automático com os Estados Unidos. Esse alinhamento automático é muito mais fundamentado em linhas ideológicas do que no pragmatismo. Dessa forma, o Brasil vem perdendo oportunidades comerciais importantes com a China, por colocar a ideologia do governo à frente dos interesses políticos do Estado brasileiro. Além da pandemia, o Brasil enfrenta turbulências políticas, inquéritos envolvendo o Palácio do Planalto, que ao se referir aos demais Poderes recorre também a metáforas de guerra. Nesse caso, qual seria a estratégia?A metáfora da guerra é utilizada pelo governo Bolsonaro não só para nomear ‘inimigos externos’, mas também para identificar ‘inimigos internos’. A retórica belicista permite também justificar ações emergenciais e drásticas dentro do país. Em relação à Covid-19, a guerra é declarada contra uma ameaça externa, para suscitar o sentimento de afastamento, como tática para distrair a atenção do mau gerenciamento da crise. Contudo, este movimento é concomitante a outras tensões políticas internas. Diante da saída de dois ministros da Saúde em plena pandemia com crescente número de casos e de mortes, e do presidente da República se manifestar em atos e decisões contra o isolamento social, como fica a imagem do Brasil no exterior?A ausência de liderança e iniciativa do governo brasileiro para conter a pandemia vem sendo fortemente criticada pela comunidade internacional. É interessante notar que mesmo os aliados ideológicos do presidente Bolsonaro, como Donald Trump, deixaram de minimizar a pandemia. Devido ao crescente número de casos e mortes, não apenas os países fronteiriços, como também os Estados Unidos, proibiram a entrada de brasileiros e estrangeiros que passaram pelo Brasil. Ironicamente, a incapacidade do governo Bolsonaro de oferecer respostas contundentes a pandemia faz com que o Brasil passe a ser identificado como ameaça por outros países. Internamente, quais desdobramentos poderiam apontar dessa junção de crise sanitária e também econômica com as investigações que envolvem o presidente e aliados políticos?A junção entre as crises sanitária, econômica e política revela um cenário tenebroso para o Brasil, no qual as instâncias democráticas estão sendo paulatinamente destruídas. Aqueles que não seguem a ideologia conservadora do governo são considerados como inimigos. Isso é sintomático da erosão do regime estabelecido desde 1988, pois a principal lição da democracia é dialogar ainda que divergindo. Quando se trata a opinião divergente como inimiga, impõe-se uma única opinião pela força, e assim cessa o diálogo.