Devidamente instalados em Brasília pelo menos desde 2019, os nove deputados federais reeleitos de Goiás têm direito de receber ajuda de custo sob justificativa de compensar despesas com mudança e transporte. O benefício é amparado pelo Decreto Legislativo 172/2022, que prevê o pagamento equivalente ao subsídio do deputado, que hoje é de R$ 39.293,32, no início e no final do mandato.Com isso, os deputados reeleitos recebem, nos primeiros meses deste ano, duas cotas, somando R$ 78,5 mil. O montante para os goianos que foram reconduzidos ao cargo é de R$ 707 mil.Todos os deputados e senadores do País têm direito ao recurso extra (despesa que deve somar R$ 40 milhões), que tecnicamente tem o objetivo de auxiliar o parlamentar na mudança para Brasília no início do mandato e na viagem de volta ao seu estado, com o fim do trabalho no Congresso Nacional. O pagamento desse recurso aos reeleitos chama atenção porque eles já estão em Brasília desde o mandato anterior e vão permanecer.Questionados pela reportagem sobre o tema, os deputados reeleitos por Goiás alegaram desconhecer o auxílio ou argumentaram que o pagamento é legal, apesar de verem necessidade em ser rediscutido. Houve casos também de parlamentares que informaram que o recurso será usado em despesas gerais do mandato ou para ajudar eleitores que os procuram com demandas em diferentes áreas (a legalidade desta ação é questionada por especialistas).Em Brasília, os parlamentares podem morar em apartamentos funcionais ou receber auxílio-moradia no valor de R$ 4,2 mil. Entre os nove goianos reeleitos, sete estão atualmente em apartamentos funcionais e os outros dois recebem o auxílio para cobrir gastos nesta área.Em nota, a Câmara dos Deputados informou que a ajuda de custo de fim de mandato foi paga em 31 de janeiro de 2023 e que o benefício de início de mandato está previsto para ser pago nesta terça-feira (28). Os dados sobre parlamentares que devolvem ou recusam a ajuda de custo costumam ser fechados após o pagamento do benefício de início de mandato. Apesar de parlamentares terem alegado desconhecer o auxílio, a reportagem conferiu que o recurso pago em 31 de janeiro consta na folha dos nove reeleitos. Além disso, a Câmara confirmou em nota que, de acordo com o Decreto Legislativo 172/2022, “todos os deputados recebem uma cota no final do mandato e outra no início do mandato”.As duas parcelas da “verba-mudança” são remanescentes dos 14º e 15º salários que foram pagos anualmente aos parlamentares até 2013. Na época, ficou definido que o repasse ocorreria apenas no início e no final do mandato.Tramitam na Câmara dos Deputados pelo menos seis projetos que propõem o fim deste benefício. Uma das matérias foi apresentada pelo deputado Lucas Redecker (PSDB-RS) em 2020. Na época, o parlamentar argumentou que um ato da mesa diretora foi publicado naquele ano prevendo que o benefício não seria pago aos reeleitos e aos residentes no Distrito Federal. No entanto, o documento foi republicado dias depois sem essas regras.Leia também:- Congresso tem 34 propostas ligadas a ataques golpistas do 8 de janeiro- Ampliação de prédio da Câmara de Goiânia deve custar R$ 5,3 milhõesJustificativas Adriano do Baldy (PP) lembrou que foi contemplado com o benefício em 2019 e argumentou que o recurso é um apoio de logística. Para o deputado, a verba é importante para deputados que não têm outra renda além do salário. O parlamentar negou conhecimento sobre o pagamento de duas cotas no início deste ano.José Nelto (PP) afirmou que ficou sabendo sobre o recurso previsto para 2023 por causa do contato feito pela reportagem. O deputado disse que não movimenta com frequência a conta em que recursos “de Brasília” são depositados e afirmou que “no passado” doou verbas deste tipo para o Hospital Araújo Jorge. Da mesma forma, Rubens Otoni (PT) negou saber sobre o benefício.Já Glaustin da Fokus (PSC) argumentou que o recurso é repassado na folha de pagamento dos parlamentares, mas avalia que os deputados deveriam apresentar a despesa da mudança para Brasília e serem ressarcidos de acordo com o gasto. O deputado relata que fez esta sugestão em reunião com o presidente Arthur Lira (PP-AL). Empresário, Glaustin afirma que recursos como estes são usados para ajudar famílias e entidades que procuram seu gabinete.Em posicionamento semelhante, Professor Alcides (PL) disse que todo o dinheiro que recebe como deputado federal é usado em obras sociais. Questionado sobre sua opinião em relação ao benefício, o deputado disse que é um direito assegurado aos parlamentares, mas acredita que pode ser rediscutido.A reportagem também tentou contato com Célio Silveira (MDB), Zacharias Calil (UB), Flávia Morais (PDT) e Magda Mofatto (PL), mas não houve retorno até o fechamento da edição. Os senadores também têm direito ao benefício. Wilder Morais (PL), que iniciou seu mandato por Goiás no início de fevereiro e deve receber uma cota de R$ 39 mil, informou que devolverá o valor.Verbas Além do salário de R$ 39 mil, os deputados recebem uma série de recursos para pagamento de despesas com mandato. Para os goianos, são R$ 41 mil de cota parlamentar (o valor é variável de acordo com o estado), que podem ser usados com passagem aérea e contas de celular, por exemplo. Os deputados também podem usar R$ 118 mil por mês para pagar os salários de funcionários.Desrespeito ao princípio de economicidade é apontadoO pagamento de ajuda de custo a parlamentares para despesas com mudança e transporte é visto por especialistas como desrespeito ao princípio da economicidade (tem relação com a busca pelo melhor resultado possível no uso de determinado recurso). “É pura e simplesmente um privilégio a mais que os parlamentares concedem a si próprios sem sequer precisar prestar contas sobre como usaram esse recurso. É uma apropriação do dinheiro público para interesses individuais”, afirma a diretora de programas da ONG Transparência Brasil, Marina Atoji.Para Marina, no caso dos reeleitos, o descumprimento do princípio da economicidade é ainda maior, pois os parlamentares já se estabeleceram de alguma forma em Brasília para o exercício do mandato. Desta forma, diz a diretora, o auxílio perde sua alegada função e acaba virando uma remuneração extra. “O Congresso viola o princípio da economicidade, pois aumenta gasto público sem gerar benefício à sociedade, melhorar políticas públicas ou mesmo a qualidade do trabalho dos congressistas”, declara ela.Na visão da diretora, um benefício para custear a mudança de parlamentares deveria ser restrito ao início do mandato daqueles que foram eleitos pela primeira vez para o cargo e que comprovem a necessidade, de acordo com critérios bem definidos, e deveria ser pago na forma de reembolso mediante apresentação de notas fiscais.Quanto à alegação feita por deputados goianos de que o recurso será usado em outras despesas do mandato e para ajudar pessoas que procuram seus gabinetes, Marina afirma que este destino é ilegal. “A finalidade da verba é clara: compensar despesas com mudança e transporte. Qualquer uso fora disso é desvio do recurso, especialmente o uso para ‘ajudar pessoas’”, afirma.Professor do Departamento de Administração da Universidade de Brasília (UnB), Francisco Antônio Coelho Júnior também cita o princípio da economicidade e lembra que até hoje o Legislativo tem direito a benefícios criados na década de 1960 com o objetivo de incentivar a ocupação de Brasília. “Economicidade é um princípio básico e é uma das dimensões de eficiência, tem relação com redução de desperdícios, maior qualidade do gasto público, rapidez e celeridade na prestação de contas e transparência”, explica.