“Lula, guerreiro do povo brasileiro”, gritava um lado. “Lula ladrão, seu lugar é na prisão”, respondia o outro. A chegada do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva a Lisboa reproduziu a polarização vista no Brasil. Eleitores vestidos de vermelho e de verde e amarelo repetiram provocações e gritos de guerra da campanha. Reunidos na frente do Palácio de Belém, sede da presidência de Portugal, eles deram trabalho à polícia, que precisou separar os grupos e organizar o trânsito na hora da chegada da comitiva de Lula nesta sexta-feira, por volta das 13h30, horário de Brasília, para um encontro com o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa. À noite, ele era esperado para um jantar com o primeiro-ministro António Costa, que durante as eleições declarou apoio ao petista.“Eu vim porque quero que Lula veja que tem apoio em Portugal”, afirmou a funcionária pública aposentada Débora, que pediu para ter seu sobrenome preservado. “Eu me aposentei e saí do Brasil em 2019 porque fiquei desolada com a eleição do Bolsonaro”, conta esta mineira de Belo Horizonte.Ela integra o grupo Lula Portugal, que reúne cerca de 160 pessoas e foi formado nestas eleições. “Há pessoas de vários partidos e as reuniões são acertadas pelo WhatsApp. Houve muita articulação, distribuição de material”, diz. Débora afirma que as eleições em Portugal não foram tão tensas quanto no Brasil. “Nos dias das votações, houve muita provocação, um ou outro momento mais tenso, mas só questões verbais. Nosso trabalho era mais voltado para o eleitor, não para o outro lado”, explica.“O mais importante da vitória do Lula foi quebrar o ciclo para voltarmos a ter políticas públicas para cultura, educação, saúde”, continua Débora. “Tenho críticas, mas sempre votei no Lula. Ele apoia pessoas que são negligenciadas, devolve às pessoas algo que deveria ser coletivo.”O professor de História André Eduardo, de Caruaru, Pernambuco, que foi a Belém tentar ver o presidente eleito, tem uma opinião parecida e não poupa críticas a Bolsonaro. “Ele é um necropolítico, é antidemocrático na sua síntese, é anticonstitucional em sua essência. Um ser abjeto”, dispara.Um dos motivos que o trouxeram a Portugal foi se sentir inseguro no Brasil por ser da comunidade LGBTQIA+. “Bolsonaro é homofóbico e isso autoriza outras pessoas a agredirem os homossexuais, as pessoas trans.” Ele está feliz com a vitória de Lula, mas faz um alerta. “O ovo do fascismo está sempre pronto a eclodir. O bolsonarismo já é maior que Bolsonaro. A dimensão disso, a história vai contar.”A reportagem tentou conversar com pessoas a favor de Bolsonaro, mas houve hostilidades. “Quando vejo jornalistas tenho vontade de vomitar”, respondeu uma senhora. Um homem tentou atrapalhar o trabalho do repórter da Rede Globo. Quando o profissional pediu para que não fizesse aquilo, o apoiador do presidente respondeu: “falo o que eu quiser”.Um eleitor de Bolsonaro entrou no meio do grupo de petistas e, depois de xingado, foi retirado pela polícia portuguesa. Pessoas de carro passavam apoiando um e outro grupo. Um Lula de papelão fez sucesso entre o pessoal do PT; já entre os apoiadores do atual presidente, foi tocado o hino nacional e apareceram cartazes pedindo golpe militar. Havia bandeiras do Brasil entre as duas torcidas e nem a chuva fina desmobilizou as pessoas.Entre um grito de “genocida” aqui e de “comunista” acolá, os manifestantes dos grupos contrários mantiveram distância entre si. Repórteres das principais emissoras de TV de Portugal estavam presentes. E havia cidadãos portugueses também. Joana Pereira é casada há 10 anos com Fábio, um trabalhador da construção civil que veio de Rondônia. “Apoio Lula por uma questão de liberdade. No dia da eleição, levei um cravo para lembrar da Revolução dos Cravos, que derrotou o fascismo em Portugal”, conta. “Espero que este novo governo emende o que Bolsonaro destruiu nesses quatro anos.”Na eleição que passou, 80 mil brasileiros estavam aptos a votar em Portugal. Lula sagrou-se vitorioso nas três zonas eleitorais (Lisboa, Porto e Faro), mas tal como ocorre no Brasil, há brasileiros que o amam e há os que o detestam. O presidente eleito fica no país até este sábado, quando há a intenção de promover um encontro com movimentos sociais que o apoiaram. A agenda vem sendo cercada de cuidados, já que grupos simpatizantes de Bolsonaro e que contestam, sem provas, o resultado das urnas também querem dar seu recado ao novo presidente. Teme-se que possa haver confusão.Leia também:- Mercadante diz que Lula indicará um civil para o Ministério da Defesa - Ieda Leal defende a criação do Ministério da Igualdade Racial para combater o racismo no Brasil Retrato do Brasil segue polarizado“O PT só fez roubar”, disse um eleitor brasileiro, na fila da votação, em uma reportagem do jornal diário O Público, um dos principais de Portugal. “Eles não podem voltar”, pedia. Antes, uma senhora foi ainda mais enfática, só que na direção oposta. “Bolsonaro é o filho do capeta! Diz que é evangélico, mas não é. É homofóbico, não gosta de mulheres, só protege a família, os ricos, os garimpeiros, os donos de fazendas.” Eles fazem parte de um contingente cada vez maior de brasileiros que chegam a Portugal. Da construção civil às universidades, o que não faltam são pessoas que migraram em busca de oportunidades.A eleição no Brasil mobilizou intensamente essa multidão. Da cidade de Braga, no norte de Portugal, por exemplo, saiu um comboio (assim eles chamam os trens de ferro) cheio de eleitores de Lula que se organizaram para vir ao Porto votar juntos. Aliás, calcula-se que apenas em Braga vivam hoje cerca de 13 mil brasileiros, o que já valeu à cidade o apelido de Braguil.Entre as dez maiores regiões de Portugal, segundo o jornal Diário de Notícias, Braga é a única que cresce em número de habitantes, graças aos brasileiros. E eles afirmam que algumas tendências constatadas na terra natal se reproduzem também aqui.Os empresários brasileiros radicados em Portugal, a exemplo de seus colegas brasileiros, também preferiam que Bolsonaro tivesse sido reeleito. Em reportagens dos jornais lusitanos, eles disseram que se Lula ganhasse, haveria uma onda migratória para Portugal. Irônica, Inês Pedrosa, uma das principais escritoras portuguesas, postou no Twitter: “Aviso aos bolsonaristas que estejam a fazer as malas: em Portugal aborto e casamento gay são legais, a escola ensina igualdade de gênero e o governo é socialista. Por favor, não venham para cá. Agradecida.” Aliás, a vinda de adeptos da direita mais radical gera preocupação.A legenda de extrema-direita em Portugal – e, portanto, a que tem mais afinidades com as ideias defendidas pelo bolsonarismo – é o partido Chega! Sim, ele tem esse nome que já parece, por si só, um grito. No pleito legislativo ocorrido neste ano, o Chega elegeu 12 deputados. Mas atenção ao detalhe: dois terços dos votos que obtiveram foram dados por brasileiros que têm o direito de votar. E eles apoiam exatamente o partido cuja plataforma é a mais hostil aos estrangeiros. As frases conservadoras, o asco à esquerda e o discurso mais autoritário e moralista mostram-se mais fortes nessa aliança.Nos dias que precederam a votação nos dois turnos, era possível ver pessoas com camisas da seleção andando pelas ruas, sobretudo em Lisboa, mas também brasileiros vestindo camisas com estrelas vermelhas ou com fotos de Lula. Havia pequenas provocações, mas nada muito sério, bem longe do clima bélico que tomou o Brasil e fez a violência política estourar. Depois da vitória do candidato do PT, houve festas em pontos da capital portuguesa. No Porto, uma rua próxima à região da Beira, a parte mais turística e movimentada da cidade, foi fechada para a celebração dos eleitores do presidente eleito.Reflexo das eleições agita as ruas“Nossa expectativa é de grande entusiasmo. Temos, em relação aos próximos quatro anos, uma grande vontade que acreditamos ser mútua de trabalharmos de forma intensa.” Este foi o resumo, em entrevista à Agência Lusa, que João Gomes Cravinho, o chefe da diplomacia portuguesa, deu sobre a esperança de que as relações bilaterais entre Portugal e Brasil tenham um novo cenário a partir de 2023. “Conhecemos bem Lula. Lula conhece bem Portugal e, portanto, não estamos a começar do zero. Muito pelo contrário. Estamos a começar a partir de uma base sólida de relacionamentos passados”, completou.Essa declaração, em alguma medida, parece corresponder a um sentimento disseminado entre os portugueses. Menos de uma semana após as eleições, tomei um táxi, junto com colegas do Brasil, entre as cidades de Fátima e Batalha, dois dos destinos turísticos mais visitados de Portugal, inclusive por brasileiros. O motorista, outro João, foi logo perguntando se estávamos satisfeitos com a eleição de Lula. Devolvi a pergunta: e o senhor, está? “Ora, claro que sim. Aquele Bolsonaro era um mal educado.” Ele justificou a opinião com um argumento. “Não viu o que ele fez com o nosso presidente?”O taxista se referia, especificamente, às comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil, quando o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, foi a Brasília para a festa e não teve o tratamento merecido, na visão de seus patrícios. “Eu nunca vi nada parecido”, disse o motorista, aludindo ao fato de Bolsonaro não ter dado atenção ao convidado e até ter colocado entre os dois, no palanque das autoridades, a figura excêntrica do empresário Luciano Hang. “Quem era aquele senhor?”, me perguntou um professor. “Aquilo foi uma humilhação”, atesta João, recordando outro deslize do presidente brasileiro.Não passou despercebido por ele e pelos meios de comunicação portugueses o fato de Bolsonaro ter usado, amplamente, o slogan “Deus, Pátria, Família e Liberdade”. Esse lema remete diretamente à ditadura de cunho fascista do Estado Novo português, liderada a ferro e fogo por António Salazar entre 1933 e 1970. Uma das principais agências de checagem de Portugal, a Polígrafo, ressaltou esse fato quando a frase foi pronunciada na cerimônia de recepção do coração de D. Pedro I em Brasília. Logo este monarca, que em Portugal entrou para a história como D. Pedro IV e é louvado por aqui como defensor da liberdade.Nos principais canais de notícias da TV de Portugal, a vitória de Lula foi considerada benéfica para Portugal e seus interesses. No segundo turno das eleições presidenciais, SIC, RTP e CNN Portugal mantiveram uma cobertura intensiva durante todo o dia, com transmissão ao vivo ao longo daquele domingo e acompanhamento minuto a minuto da apertada apuração dos votos. Em várias oportunidades, entraram com seus repórteres falando diretamente de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Ao mesmo tempo, convidados no estúdio davam opiniões e faziam análises sobre os mais diferentes aspectos envolvidos.O discurso majoritário dessa cobertura foi mais ou menos o mesmo: os laços entre o Brasil e o restante do mundo esfriaram muito sob o governo de Jair Bolsonaro. Eles mencionaram, de forma insistente, os ataques à democracia e ao sistema eleitoral realizados pelo então candidato à reeleição, enfatizaram o descontrole do desmatamento na Amazônia e a má gestão da pandemia de Covid-19. Ao mesmo tempo, quando falaram de Lula, lembraram os escândalos de corrupção que envolveram o PT e o próprio ex-presidente, mas admitiram que o candidato que tentava voltar ao Planalto tinha um histórico positivo em muitas áreas.Já o tratamento dado a Bolsonaro trazia a antipatia que ele cultivou na Europa em razão de suas atitudes consideradas inapropriadas. A visão negativa sobre o presidente brasileiro ficou mais explícita na imprensa lusitana quando ele, no último debate eleitoral com Lula, foi ríspido com o correspondente da emissora portuguesa RTP, Pedro Sá Guerra, ao dizer que não entendera sua pergunta porque “não falava portunhol”. Os comentários sobre o episódio foram da incredulidade ao sarcasmo. “Não chega a ser uma surpresa Bolsonaro ser indelicado com jornalistas. Quando são mulheres então…”, disparou uma âncora.Ainda assim, houve a preocupação em fazer com que vozes divergentes a respeito tanto de Lula quanto de Bolsonaro tivessem espaço. Na CNN Portugal, por exemplo, no dia da eleição, era possível assistir um debate entre comentaristas que eram mais simpáticos a um e a outro candidato. Esse embate era mais notório quando havia brasileiros entre os comentaristas, mostrando claramente que a polarização cruzou o oceano. Isso também ficou visível entre os eleitores nos dias do primeiro e segundo turno. Houve princípio de confusão entre as duas torcidas em Lisboa e no Porto, obrigando a polícia a intervir.Já sobre os protestos golpistas que se seguiram às eleições, com os eleitores de Bolsonaro gerando memes para a internet, a imprensa não só de Portugal, mas também da Espanha, da França e do Reino Unido, foi unânime em chamá-los de ilegítimos e os associarem à invasão do Capitólio, nos EUA. “Os adeptos do presidente vão parar com isso?”, inquiriram vários âncoras. Equipes da RTP e da CNN Portugal foram hostilizadas e repercutiu a entrevista de um bolsonarista que chamava o presidente francês Emmanuel Macron de comunista. Entre risos e caras de espanto, os jornalistas tentavam entender esse transe.Essa atmosfera foi identificada pelos portugueses em geral. Num balcão de check in do aeroporto do Porto, a atendente pega meu passaporte e comenta, um dia depois do primeiro turno: “Nunca vi tantos brasileiros juntos como ontem, todos de vermelho”. Onde ela teria ido? “Eles se reuniram perto da minha casa. Achavam que o Lula ia ganhar na primeira volta. Por muito pouco não deu. Fiquei com pena deles. Mas tomara que ele ganhe na segunda volta.” Tomara por quê? “Porque todos dizem que ele é melhor que o presidente que vocês têm agora.” O taxista e o chanceler portugueses diriam que sim.Portugal busca ser interlocutor privilegiadoO fato de o roteiro do primeiro giro internacional do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva ter incluído Portugal encheu de expectativas não só as autoridades lusitanas, mas também a sociedade civil e parte da imensa comunidade brasileira que reside na terra de Camões. A esperança é que as relações entre as duas nações possam recuperar uma maior proximidade, algo que evaporou no mandato de Jair Bolsonaro, presidente que em 4 anos não fez sequer uma visita ao país.Lula chegou a Lisboa vindo do Egito, onde participou da Cúpula do Clima como convidado especial dos anfitriões. O discurso que fez por lá, reposicionando o Brasil nas discussões sobre meio ambiente e fazendo um amplo contraponto às ações de Bolsonaro na área, repercutiu na Europa e sua chegada a Portugal também foi cercada por este impacto. A fala foi definida de “exuberante” pelo jornal The New York Times, por exemplo.Antes de embarcar Lula ainda se reuniu com o secretário-geral da ONU, o português António Guterres. Mas sua vinda a terras lusitanas tem caráter mais específico. Atualmente, existem cerca de 250 mil brasileiros registrados que vivem no país, mas estima-se que o número real seja o dobro disso. Eles formam o maior contingente de estrangeiros no país.Essa quantidade imensa de gente requer políticas públicas que precisam ser acertados entre as duas nações. A convivência entre portugueses e brasileiros, em geral, é tranquila, mas casos de xenofobia e racismo têm crescido. A questão da regularização do trabalho, do acesso ao sistema de saúde e até da influência linguística são assuntos debatidos com frequência.Lula já avisou que quer debater esses temas em Portugal, assim como novas oportunidades de negócios. Um encontro de cúpula oficial entre os dois governos não é realizado desde 2016. Lula chegou em um momento também delicado para Portugal. Nesta sexta, parte dos serviços públicos foram paralisados por uma greve. Os funcionários públicos receberam reajuste salarial de 3,5% diante de uma inflação na casa dos 10%.É uma “viragem”“O Brasil estava num zero de relações internacionais. Bolsonaro imprimiu a doutrina do ‘nós contra eles’. Isso também ocorreu no cenário interno”, analisou o cientista político Jorge Botelho Moniz, que fez seu doutorado no Brasil, em entrevista à CNN Portugal. “Bolsonaro tinha resistência à globalização, em trabalhar em conjunto sobre a Amazônia. Por isso Bolsonaro se permitiu avançar contra a Amazônia com forte desmatamento”, completou, ao comentar a participação de Lula na Cúpula do Clima, no Egito. “É saudável que estejamos falando de transição do poder no Brasil e não mais do risco de um golpe”, finalizou.Ele e seus colegas definem a eleição de Lula como “uma viragem”, uma mudança completa de rota do Brasil em praticamente todas as áreas. Isso já era prenunciado no dia da vitória do ex-presidente, quando seu discurso foi transmitido, ao vivo e na íntegra, por quase todas as emissoras lusitanas dedicadas ao jornalismo, mesmo já sendo madrugada na Europa. Muito desse interesse deve-se à enorme comunidade brasileira em Portugal – é o maior grupo de estrangeiros no país –, mas também em razão de motivos muito práticos para os lusitanos: oportunidades de negócios com um diálogo que, preveem, será mais próximo.As transações entre os dois países têm potencial de incremento. Portugal consome muitos produtos agrícolas tupiniquins, sobretudo neste momento em que a Guerra da Ucrânia limitou as opções de compra desses produtos. O turismo feito pelos brasileiros e o mercado imobiliário aquecido com a chegada de mais gente do Brasil disposta a se instalar de vez por aqui têm trazido divisas. Recursos humanos também estão nessa pauta. O número de estudantes do Brasil em universidades lusitanas mais que dobrou nos últimos 5 anos e Portugal acaba de criar um tipo de visto que facilita a vinda de brasileiros para trabalhar.-Imagem (Image_1.2563569)-Imagem (Image_1.2563567)