Pessoas que convivem com a dor crônica, hoje conhecida como fibromialgia, passaram a receber mais atenção das políticas públicas, que atualmente enxergam essa realidade com mais sensibilidade e acolhimento. Só quem enfrenta a síndrome sabe como é desafiador conviver diariamente com dores no corpo, que muitas vezes vêm acompanhadas de outros sintomas, como ansiedade, depressão, hipersensibilidade ao toque, ao frio, ao calor e a ruídos.

A fibromialgia passou a ser mais estudada e compreendida no Brasil nos últimos 30 anos, mesmo sendo conhecida há bem mais tempo. Caracterizada pela dor muscular crônica e generalizada, a condição foi reconhecida como uma síndrome reumática pela Organização Mundial da Saúde em 1992. Esse reconhecimento abriu caminho para o avanço das pesquisas e para que a condição ganhasse o devido espaço na medicina.

Alguns relatos indicam que os sintomas da fibromialgia podem se intensificar durante a infecção por Covid-19, embora ainda não existam estudos conclusivos sobre o papel do vírus como gatilho da doença. Com o avanço da ciência, fico esperançosa ao ver que o tratamento da fibromialgia já está disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo acompanhamento multidisciplinar, medicamentos e terapias complementares.

Aqui em Goiânia, essa luta não passou despercebida. Em 2022, dei início a um movimento pioneiro com o Projeto de Lei nº 27/2022, que se transformou na Política Municipal de Proteção aos Direitos da Pessoa com Fibromialgia. Em 2023, a luta avançou com a criação da Lei Municipal nº 11.025, que instituiu o Cadastro e a Carteira de Identificação das Pessoas com Fibromialgia. Hoje, essa realidade já beneficia centenas de pessoas: 200 carteiras foram emitidas, sendo 188 em versão digital, disponíveis no site da Prefeitura e no app “Goiânia 24h”.

É importante lembrar que ainda há muito o que aprimorar nos tratamentos oferecidos pela rede pública. A alta demanda muitas vezes dificulta o acesso a terapias como acupuntura e ventosaterapia — fundamentais para aliviar a fadiga e o mal-estar, que às vezes surgem com febre. Nem todos têm plano de saúde para custear essas sessões nos períodos mais críticos da dor.

Segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), cerca de 3% dos brasileiros entre 30 e 50 anos têm fibromialgia — o que representa mais de 6,7 milhões de pessoas. Pensando nessas vidas, criamos políticas públicas reais, e agora vemos esse movimento ganhar força também em nível nacional. Neste ano, foi sancionada a Lei Federal nº 15.176/2025, que reconhece oficialmente a fibromialgia como uma deficiência. A norma foi publicada no Diário Oficial da União de 24 de julho e entra em vigor em janeiro de 2026.

Com essas conquistas, estamos construindo um caminho mais digno para quem sente uma dor que o mundo muitas vezes não vê. E seguimos firmes: quem sofre em silêncio precisa de escuta, atenção e lei.

Sabrina Garcez, advogada, especialista em Direito Constitucional e Administrativo. Secretária Municipal de Governo de Goiânia

Os artigos publicados não refletem a opinião de O POPULAR. Sua publicação obedece ao propósito de estimular e fomentar a diversidade e o debate de temas locais, nacionais ou mundiais.

Avanços no apoio à fibromialgia

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Sabrina Garcez

Glosa é a dedução total ou parcial de uma quantia registrada em um documento. Está prevista em várias leis e a sua utilização é muito comum como uma forma de retenção de pagamentos quando são identificadas inconformidades na execução dos serviços ou na apresentação das contas.

Como é um ato excepcional, exige-se causa justa para a sua aplicação, porém, as operadoras de Planos de Saúde utilizam-se das glosas de forma indistinta e injustificadamente, causando aborrecimentos para os profissionais, que veem seus pagamentos sendo reduzidos indevidamente, bem como lhe obrigando a entrar com recursos, que geralmente são ilegalmente indeferidos. As glosas e as decisões em seus recursos devem ser fundamentadas, não se admitindo decisões mecânicas, sem a indicação precisa dos motivos determinantes.

Da mesma forma, não é admissível a inexistência de recurso para instância superior. A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (DL nº 4.657/ 1942), em seu artigo 21 assegura que “a decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”.

Em seu parágrafo único, determina que “a decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos”. Assim, as decisões de manutenção das glosas, verificando que o serviço foi realmente prestado, tem o dever de indicar a forma de correção das inconformidades, sob pena de configurar uma forma de enriquecimento ilícito.

A falta de justificativa plausível das glosas configura um abuso de direito passível de responsabilização judicial, tanto na esfera cível, com indenizações por danos materiais e morais, como na Justiça Criminal, posto que pode configurar crime. O artigo 171 do Código Penal define o crime de estelionato como “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.

Analisando esse tipo penal, verifica-se a sua perfeita adequação às condutas abusivas dos planos de saúde. O auditor, quando abusivamente glosa uma conta ou nega o recurso dessa glosa, está obtendo para o plano, uma vantagem ilícita, pois o valor glosado é do profissional que prestou o serviço, causando-lhe prejuízo mediante um artifício, que é a glosa indevida. Cabe aos prejudicados a defesa de seus direitos.

O abuso de direito precisa ser responsabilizado, sob pena de perpetuação de ilegalidades. Assim, cabe aos prejudicados a defesa de seu direito, denunciando essa prática criminosa, para que o Poder Judiciário possa apurar e aplicar a devida reprimenda, que tem também o efeito educador.

Marcelo Celestino, promotor de Justiça aposentado. Advogado de direito de saúde

Os artigos publicados não refletem a opinião de O POPULAR. Sua publicação obedece ao propósito de estimular e fomentar a diversidade e o debate de temas locais, nacionais ou mundiais.

Glosas criminosas

Marcelo Celestino

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.” A máxima de Beauvoir ecoa na experiência de Consuelo Nasser, que transformou indignação em ação concreta. Advogada, jornalista e feminista por convicção, nascida em 1947, enfrentou o autoritarismo entendendo a imprensa como trincheira de resistência. Fundou veículos contra-hegemônicos, como o Cinco de Março, Edição Extra e Revista Presença, desafiando a censura e disputando a memória coletiva em um Brasil atravessado pela Ditadura.

Em 1981, após o feminicídio da cantora Eliane de Grammont, Nasser liderando uma rede de mulheres voluntárias, criou o Centro de Valorizacao da Mulher (Cevam), pioneiro no acolhimento jurídico, psicológico e social de mulheres vítimas de violência , antecipando debates que só mais tarde seriam incorporados pelo Estado, estruturando um modelo popular e interdisciplinar de enfrentamento à violência de gênero.

Ao fundar o Cevam e transformar casa, escrita e voz em trincheiras, Nasser produziu uma teoria encarnada do feminismo. Apesar de sua relevância, a única homenagem oficial à sua memória é a Penitenciária Feminina Consuelo Nasser, em Aparecida de Goiânia, gesto que preserva o nome, mas não restitui sua densidade histórica. O silêncio que a envolveu por décadas não é sinal de irrelevância, mas sim de potência; a potência incômoda de uma mulher que, ao resistir, desafiou os alicerces do silêncio e estremeceu o sistema repressivo patriarcal.

Se Beauvoir desafiou os limites da filosofia europeia, Nasser desafiou os da política brasileira, convertendo cuidado, escuta e palavra em insurgência cotidiana. Resgatar Consuelo Nasser, portanto, é um ato político de reparação e, sobretudo, de reconstrução epistemológica. É reconhecer que o feminismo brasileiro foi, e ainda é, plural, marcado por práticas e pensamentos desenvolvidos em diferentes territórios e por diferentes mulheres, muitas das quais ainda permanecem fora dos espaços de legitimidade acadêmica e midiática.

Consuelo Nasser, patrona da cadeira número seis da Academia Goianiense de Letras (AGNL), foi uma mulher à frente do seu tempo, comprometida com a justiça social e a cidadania. Como feminista, sinto-me tocada por essa conexão simbólica e afetiva com sua memória, que também se deu de forma concreta durante minha atuação como Delegada da Mulher (1994 a 1997) e da Criança e do Adolescente (2002 a 2005), quando testemunhei sua atuação firme e generosa no acolhimento e encaminhamento das mulheres e adolescentes vitimizadas.

Após anos de enfrentamento às estruturas patriarcais do Judiciário e da sociedade, Consuelo tirou a própria vida, em agosto de 2002, poucos anos depois do suicídio de seu filho. Sua morte carregou e expôs não apenas a dor pessoal de uma mulher que desafiou o conservadorismo de sua época, mas também as consequências emocionais da trajetória marcada por rupturas, enfrentamentos e perdas.

Por fim, mesmo que este texto não seja sobre Beauvoir, mas sobre Nasser, falar delas é escrever a trajetória de todas as meninas e mulheres do mundo. Por isto, é importante tecer e enfatizar que a filosofia de Beauvoir ganhou corpo na insurgência de Consuelo; e a história de Consuelo, ao ser resgatada, relança a pergunta de Beauvoir: o que é ser mulher em um mundo que insiste em negar a sua humanidade plena?

Laudelina Inácio da Silva, advogada criminalista, mestre e doutora em Ciências Criminais. Vice-presidente da Federação Internacional das Mulheres de Carreira Jurídica

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Uma voz arquivada

Laudelina Inácio da Silva

A falta, essa presença tão constantes quanto silenciosa, caminha conosco. Companheira persistente, não chega como castigo, mas como parte do que somos. Aprender a viver com ela é, talvez, o maior gesto de liberdade – viver com mais leveza, mais humanidade, mais verdade.

Nós, mulheres, fomos educadas para sermos tudo. Boas profissionais, mães exemplares, companheiras impecáveis, belas sem esforço, organizadas sem falhas, disponíveis sem pausa. A cobrança é tanta que, por vezes, já nem sabemos se queremos ou apenas repetimos o que nos disseram que deveríamos querer.

Essa exigência de perfeição não brota de dentro. Tem raízes profundas, fincadas nas estruturas sociais, econômicas e culturais erguidas pelo patriarcado. Silvia Federici lembra que a opressão feminina caminha lado a lado com a história da propriedade privada e o controle sobre nossos corpos.

Hoje, conquistamos espaço, voz, independência. Mas ainda carregamos o peso de sermos boas em tudo. A armadilha é sutil: a liberdade existe, mas vem acompanhada da exigência de um desempenho impecável. E isso, sejamos honestas, é humanamente impossível.

A cultura da perfeição, que exige de nós respostas imediatas e produtividade incessante, não é apenas exaustiva: ela adoece. A ansiedade, a depressão e os transtornos alimentares crescem como sintomas de um corpo social que não permite descanso, falha ou silêncio. É preciso romper com essa lógica que nos mede pelo que entregamos, e não pelo que sentimos ou desejamos. A falta, nesse sentido, não é defeito, mas resistência contra a tirania da performance.

A psicanalista Colette Soler diz que “o sujeito está constituído pela falta”. É dela que nasce o desejo, a criação, a possibilidade de recomeçar. A imperfeição não nos diminui – revela-nos. Aceitar a falta é também abrir espaço para a potência criativa. Quando tudo parece completo, nada se move. É a ausência que impulsiona o desejo, que nos convida a inventar novos caminhos.

Simone de Beauvoir já nos alertava: não nascemos mulheres, tornamo-nos. E esse tornar-se é sempre inacabado, cheio de brechas que permitem transformação. A beleza da falta está aí: na promessa de que sempre é possível recomeçar.

Olhar para si mesma com gentileza é um ato de coragem. Reconhecer falhas, acolher fragilidades, entender que nem tudo será perfeito – e que está tudo bem. Como uma lente fotográfica, que traz para o foco o que importa agora e deixa o restante suavemente desfocado. A vida também é assim: feita de fases e prioridades que mudam.

Hoje o foco pode ser o trabalho. Amanhã, o cuidado com alguém. Depois, o silêncio, o descanso, o amor. E tudo isso é viver. A exigência de equilíbrio absoluto é desumana. É urgente deixarmos para trás os papéis escritos por mãos alheias e começarmos a escrever os nossos próprios.

Somos múltiplas – e isso basta. Mulheres, profissionais, cidadãs, criadoras, amantes, filhas, humanas. Lidar com a falta é reconhecer-se viva. E permitir-se ser vulnerável é, também, reconhecer-se inteira.

Maria Lúcia Oliveira, psicóloga, mestra em Ciências da Religião, especialista em terapia de casal e de família, em psicopatologia com ênfase em transtorno de ansiedade

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A beleza da falta

Maria Lúcia Oliveira

Nos anos 1990, a hiperinflação parecia um problema insolúvel. O Plano Real mostrou que, com mobilização coletiva e disciplina institucional, é possível mudar o rumo da história. Hoje, o país não enfrenta mais a corrosão diária da moeda, mas uma tríade de dilemas que marcará as próximas duas décadas: a dívida pública em trajetória preocupante, a produtividade estagnada e o envelhecimento acelerado da população.

A esses desafios soma-se um fator recorrente nas pesquisas de opinião: a eclosão epidêmica da violência. Além de afetar o bem-estar, corrói a imagem internacional do Brasil e encarece o “prêmio de risco” dos investimentos. É também um obstáculo ao desenvolvimento de longo prazo.

A (in)sustentabilidade fiscal se expressa pela dívida bruta em torno de 78% do PIB. Cada aumento da Selic amplia o custo do endividamento e reduz espaço para investimentos. Um plano de médio e longo prazo de ajuste fiscal, com metas claras, é indispensável. Se aceito pelo mercado, permitiria “trazer a valor presente” a trajetória de redução da dívida.

O segundo dilema é a baixa produtividade. Há duas décadas o PIB cresce em torno de apenas 1,5% ao ano e a produtividade total dos fatores pouco avança. Enquanto Coreia do Sul e Finlândia romperam a armadilha da renda média com forte investimento em ciência e tecnologia, o Brasil aplica só 1,2% do PIB em P&amp;D.. Para o Brasil, não basta gastar mais: é preciso integrar universidades e centros de pesquisa ao setor produtivo, para que a inovação se traduza em crescimento.

O terceiro desafio é a transição demográfica. Em 2041, o país atingirá seu pico populacional; depois, a população encolherá e a razão de dependência crescerá rapidamente. O gasto previdenciário pode chegar a 17% do PIB. A resposta passa por fortalecer a escola pública: as crianças que ingressam hoje no ensino fundamental estarão no mercado em 2041. Apenas ganhos expressivos de produtividade compensarão o declínio demográfico. A educação é o principal fator de transformação intergeracional, com efeito de spillover sobre desigualdade, instituições e consciência ambiental.

Além dos três dilemas, há fatores estruturais que moldam nossa capacidade de resposta. A desigualdade mantém o Brasil entre os mais desiguais do mundo e, sem inclusão social e previdenciária, faltará base política e fiscal para reformas. A educação segue com baixos índices em matemática e ciências, comprometendo a formação de capital humano para inovação. Já a fragilidade regulatória reduz a eficácia das políticas. Um plano de longo prazo só funcionará se ancorado em estabilidade institucional e coordenação federativa.

Dívida, inovação e demografia são engrenagens interdependentes. Assim como o país rejeitou a inflação, deve agora rejeitar a negligência diante desses desafios. É necessária uma consciência coletiva e intergeracional para que o Brasil não perca as próximas duas décadas.

Francisco Sérvulo Freire Nogueira é secretário de Estado da Economia

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