A semana embola as grandes polêmicas que opõem Brasil e Estados Unidos e obrigam o presidente Lula a se equilibrar entre suas visões de mundo e as de Trump, em favor dos reais interesses brasileiros: os ataques ilegais dos EUA a embarcações venezuelanas, com mais de 70 mortos, classificar organizações criminosas como terroristas, abrindo o flanco para intervenção americana, e, durante a COP 30, meio ambiente, sustentabilidade e financiamento de florestas tropicais. O tarifaço paira sobre tudo isso.

Na escapulida de Belém, onde continua a COP, para Santa Marta, na Colômbia, onde se reuniram a CELAC (América Latina e Caribe) e UE (Europa), Lula enfrentou a tripla pauta, digamos, antiamericana, e criticou o “uso da força militar”, as “manobras retóricas” e “as intervenções ilegais” na nossa região, para pedir paz e dar um recado claramente endereçado aos EUA e a Trump: “Democracias não combatem o crime violando o direito internacional”.

Afora a afirmação de que “somos uma região de paz” - que vale para as relações externas, não para o cotidiano dos países -, a crítica de Lula era obrigatória e foi objetivamente correta. A questão é que Trump está de olhos e ouvidos atentos e reagiu no mesmo dia.

Segundo Trump, “eles devastaram a Floresta Amazônica do Brasil para construir uma rodovia para ambientalistas. Um grande escândalo!”. Ele não veio nem mandou delegação para a COP, defende estradas tanto quanto petróleo e não está nem aí para florestas. Logo, não foi um arroubo preservacionista, foi um contra-ataque. E o tarifaço, como fica?

Outra batalha é com o presidente da Câmara, Hugo Motta, que botou as garras de fora ao indicar Guilherme Derrite para relatar o projeto Antifacção do governo. Além de ser o mais radical na área, aplaudido pela direita e próximo das posições de Trump, Derrite é secretário de Segurança de Tarcísio de Freitas, maior adversário de Lula em 2026.

No centro do triângulo Lula, Motta e Derrite, está a proposta da oposição de classificar PCC e CV como terroristas, o que os EUA e Trump defendem há tempos e pode acarretar sérias consequências para o Brasil, inclusive como pretexto para ingerência externa. Trump adoraria.

E a COP entra na fase de números, metas e cronogramas. Lula empurra o Fundo das Florestas para o centro do debate, mas a polêmica tão quente quanto Belém é sobre o fim dos combustíveis fósseis. Os pragmáticos dizem que é um falso debate. Não é nada falsa, porém, a guerra entre ambientalistas e os pró-petróleo a qualquer custo. Nesse ponto, Lula é contra Trump na retórica. Talvez não tanto na prática.

Eliane Cantanhêde, jornalista

Muitas divergências, poucas convergências

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Eliane Cantanhêde

O cenário global está em transformação, e o Brasil, com sua histórica vocação para o agronegócio e riquezas naturais, não pode ficar à margem. A eventual assinatura do acordo entre Mercosul e União Europeia ainda este ano não representa apenas mais um tratado comercial: é um marco estratégico. Esse acordo simboliza a busca por autonomia, diversificação de mercados e ampliação de parcerias.

O Brasil é, com frequência, chamado de “Texas sul-americano”, isto é, uma potência em recursos, mas ainda dependente da exportação de commodities. A participação da União Europeia no comércio exterior brasileiro, estimada em cerca de 16%, indica a relevância de abrir outros mercados. Mas a pergunta que persiste é: estamos preparados?

O Estado de Goiás deu uma demonstração concreta de proatividade. Em 2023, exportou US$ 13,8 bilhões, obtendo um superávit aproximado de US$ 8,9 bilhões. A China foi o principal destino, absorvendo cerca de 57,5% do volume total exportado.

Esses números refletem o protagonismo do agronegócio (setor que representa cerca de 86,6% das exportações estaduais) e a força de municípios como Rio Verde, Jataí e Mozarlândia. Esse cenário demonstra que Goiás assume posição de destaque na nova diplomacia econômica brasileira.

Um movimento geopolítico mais amplo se desenha. Com os Estados Unidos adotando posturas mais protecionistas, o Brasil e outras economias emergentes se veem obrigados a buscar alternativas. O governo brasileiro intensificou a aproximação com Índia, China, nações árabes e africanas. Com a Índia, foi fixada a meta de alcançar US$ 20 bilhões em comércio bilateral até 2030; já com a China, o Brasil exportou mais de US$ 122 bilhões em 2023. A dependência de poucos mercados e de uma pauta concentrada em commodities, no entanto, torna-se evidente.

Nesse contexto, Goiás figura como caso exemplar: não basta exportar volume, é necessário agregar valor, desenvolver inovação tecnológica e qualificar as pessoas. A lição de países como Singapura e Japão mostra que produtividade sem conhecimento tem crescimento limitado.

Outro trunfo brasileiro é a própria COP 30, sediada no país neste momento. O evento coloca o Brasil no centro do debate global sobre clima e sustentabilidade; temas caros aos europeus e cada vez mais decisivos nas negociações. Goiás, com sua produção agro sustentável e potencial em minerais estratégicos para a transição energética, conecta-se diretamente a essa narrativa. A COP 30 será, para além de um evento ambiental, uma vitrine diplomática e econômica.

O acordo com a União Europeia será peça central. Assim, é preciso uma estratégia de longo prazo que integre o Brasil às cadeias globais de valor de modo sustentável. Goiás, ao se colocar na vanguarda desse debate, mostra que o Brasil do futuro se construirá com planejamento, ambição e responsabilidade. Portanto, a hora é agora. Transformar oportunidades em desenvolvimento real é o movimento que o Brasil e Goiás, em particular, precisam seguir.

Michel Afif Magul, advogado, com especialização&nbsp;em Relações Internacionais e mestre em 
Planejamento Urbano e Desenvolvimento Sustentável

Os artigos publicados não refletem a opinião de O POPULAR. Sua publicação obedece ao propósito de estimular e fomentar a diversidade e o debate de temas locais, nacionais ou mundiais.

Diplomacia econômica e a COP

Michel Afif Magul

Heranças eram cofres: abriam-se, contavam-se os bens, dividam-se as chaves. Mas a nossa geração inventou um cofre com um diário dentro e trancou os dois com senhas que ninguém conhece. Entre carteiras de cripto e mensagens confidenciais, o que é patrimônio transmissível e o que é intimidade inviolável?

A Justiça iluminou o caminho com um farol. Recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que o inventário do século 21 precisa olhar para dentro dos aparelhos, mas não às cegas. Diante do vácuo legislativo, a Corte determinou a abertura de um incidente processual para identificar, classificar e avaliar os bens digitais, conduzido pelo juiz e apoiado por um profissional de tecnologia, o inventariante digital.

Não é ficção. O caso nasce do acidente aéreo que vitimou a família de Roger Agnelli, onde iPads sem senha fecharam o acesso a possíveis ativos e a memórias íntimas. A Apple respondeu que não tem como abrir, uma vez que a criptografia foi desenhada para não ser contornada.

O STJ, então, criou um caminho processual que protege o todo: assegura a entrega de todos os bens (analógicos e digitais) e, ao mesmo tempo, resguarda a intimidade do falecido e de terceiros. A engrenagem consiste em acessar os dispositivos, mapear o conteúdo, classificar (patrimonial x existencial) e reportar ao juiz.

O que for patrimonial (criptomoedas, NFTs, documentos, contratos) é, em regra, transmissível. Já o que for existencial (mensagens privadas, fotos íntimas, confissões) tende a ficar sob o manto da vida privada. Essa distinção é o coração ético do precedente.

Houve divergência: voto vencido defendeu dar primazia à saisine digital (a sucessão universal) e usar o incidente só quando estritamente necessário, lembrando experiências estrangeiras mais permissivas ao acesso dos herdeiros.

O debate é saudável: entre transparência patrimonial e tutela da personalidade, o pêndulo jurídico ainda busca o ponto de equilíbrio. Quase todo mundo tem rastro digital valioso, mas quase ninguém planejou a sucessão virtual. Resultado? Bilhões ficam órfãos em nuvens, diários cifrados podem virar espetáculo involuntário.

O precedente, assim, não é só um manual para juízes, é um alerta para cidadãos. Planejar a herança digital deixou de ser excentricidade tecnológica, virou prudência básica. A solução brasileira baseada no incidente com inventariante digital e filtro de intimidade tem vocação para se tornar padrão.

É tecnicamente viável, constitucionalmente cautelosa e socialmente sensível. Evita tanto o apagão patrimonial quanto a devassa afetiva. Nossos antepassados queimavam cartas, nós deixamos terabytes. Se não escrevermos instruções, outros decidirão por nós e o juiz só poderá salvar o que o direito alcançar. O precedente do STJ acende a luz, mas cabe a cada um arrumar o quarto.

Lorena Bittencourt, promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás, com atuação na área de família e sucessões

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Herança digital

Lorena Bittencourt

Nos últimos 80 anos, o Brasil avançou de forma expressiva na expectativa de vida: um brasileiro nascido na década de 1940 viveria, em média, 45,5 anos; hoje, a média é de 76,4 anos. Esse salto está intimamente ligado à ampliação do acesso ao saneamento básico. Mas ainda há muito a ser feito. De acordo com o Painel Saneamento Brasil, mais de 16% da população não tem acesso à água potável e cerca de 44% não dispõe de coleta de esgoto. Em números absolutos, são 34 milhões de pessoas sem água tratada e 90 milhões sem coleta de esgoto.

Somente em 2023, de acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil registrou quase 197,5 mil internações provocadas por doenças de veiculação hídrica, que são aquelas transmitidas pelo consumo de água contaminada. Se o acesso fosse universal, os benefícios seriam imensos: menos pressão sobre os serviços de saúde, maior expectativa de vida e desenvolvimento econômico mais sólido. Com saneamento, há menos doenças, menos dias de trabalho perdidos e menores gastos com tratamento, tanto para o indivíduo quanto para o Estado.

O saneamento também é uma questão ambiental. Proteger os recursos hídricos é proteger a vida. Ainda assim, toneladas de lixo e esgoto sem tratamento são lançados diariamente em rios e mananciais. Às vésperas da COP 30, que terá Belém do Pará como sede, os olhos do mundo se voltarão para a cidade e para o Brasil. Nesse cenário de grande visibilidade internacional, problemas estruturais como os baixos índices de saneamento básico podem chamar a atenção de forma negativa.

Temos aqui dois importantes exemplos. Em Goiás, segundo dados do Instituto Trata Brasil de 2025, Goiânia e Aparecida de Goiânia estão entre os 10 municípios com melhor desempenho no Ranking do Saneamento. Goiânia subiu para a 7° posição, sendo a capital com melhor cobertura de saneamento do Brasil. Goiânia tem hoje 99,62% da população atendida com água tratada e 99,62% com esgotamento sanitário, um exemplo para o País.

Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS/2022), a situação do Pará é crítica: 72% dos domicílios urbanos não estão conectados à rede coletora de esgoto; quase 92% da população não tem coleta de esgoto em suas residências; aproximadamente 91% da população do estado não tem coleta e tratamento de esgoto e no abastecimento de água, 49% da população ainda não é atendida. Em Belém, a situação reflete esse cenário. Apenas 6,28% são coletados e, desse volume, somente 2,38% recebem tratamento. Diante desse quadro, é urgente refletir sobre a importância do investimento em saneamento. Há quem diga que obras de esgoto não atraem atenção porque ficam enterradas e não trazem “visibilidade política”. Se isso for verdade, precisamos mudar essa lógica.

Como médico e gestor em saúde, defendo que o saneamento básico é um dos pilares do desenvolvimento social. Ele está ligado à inclusão, à equidade e à dignidade humana. Não há justiça social plena sem que o saneamento chegue a todos. O cuidado com a saúde não começa na recepção de hospitais ou clínicas, mas nas condições de vida de cada bairro e comunidade. É um tema que precisa estar no centro do debate público em todos os níveis.

Frederico Moraes Xavier, médico uro-oncologista, cirurgião robótico e gestor de Saúde

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Saneamento e qualidade de vida

Frederico Moraes Xavier

Dos 14 territórios de Goiás e da vivência da agricultura familiar, ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, surge a esperança de uma refundação territorial do Estado brasileiro. Ela não nasce de decretos, mas da recuperação do Oikos — a casa que sustenta a vida, onde o humano e o natural se reencontram na partilha da terra e da água.

O século 21 chegou ao limite de suas promessas. A COP-30, em Belém do Pará, marcará o instante em que a humanidade terá de admitir: o futuro não se decide nas cúpulas, mas nos territórios. Enquanto o planeta negocia metas, o Cerrado já ensaia a regeneração — não como discurso, mas como existência concreta e coletiva.

No coração do país, o Projeto Rede Arca de Agroecologia e Segurança Alimentar do Cerrado tornou-se uma das experiências mais sólidas de construção territorial de políticas públicas. Pelo Termo de Fomento nº 969638/2024 – MDA/Arca, no edital Da Terra à Mesa, o projeto reúne 14 territórios, 37 municípios e 24 organizações da agricultura familiar, cobrindo 75% do território goiano. Sob coordenação da Territórios Globais (TG), oficinas e diagnósticos viraram processo coletivo: as 17 Agendas Ambientais Territoriais, expressão de um pacto entre sociedade e natureza.

Essas agendas nasceram do chão e das veredas. São sínteses de cenários e futuro: transição agroecológica, recuperação de nascentes, reflorestamento produtivo, energia solar cooperada, sucessão rural, envelhecimento digno e inovação comunitária. Cada pauta é gesto político e horizonte possível — juntas, delineiam uma forma inédita de Estado enraizada na vida e sustentada pela cooperação solidária.

Esse movimento funda o conceito de federalismo biocêntrico — pacto em que o humano reconhece sua interdependência com todas as formas de vida. O Cerrado deixa de ser periferia e torna-se centro ético e político da regeneração nacional.

Nele, o Estado volta a ter chão: cada nascente é decisão, cada comunidade, governo. O país deixa de ser pirâmide e torna-se rede viva. A Rede Arca inaugura também uma pedagogia do território: mapear nascentes é compreender o mundo; planejar é cultivar e persistir.

O saber técnico e o popular se unem, criando uma inteligência pública que transforma planejamento em consciência e política em aprendizado. Enquanto o Norte global busca compensações financeiras, o Cerrado propõe reparação simbiótica e ética — regenerar a vida humana regenerando o ambiente.

Essa é a vanguarda ambiental que o Cerrado oferece à COP-30: projeto civilizatório baseado na reciprocidade entre natureza, trabalho e comunidade, onde o desenvolvimento se mede pela capacidade de cuidar e de criar alternativas locais sustentáveis, justas e solidárias.

O desafio agora é político: transformar as 17 agendas em políticas oficiais, instituir audiências ecológicas e consolidar uma federação que aprenda com a terra. Porque não há futuro sem território, e não há território sem cuidado — nem humanidade sem o Cerrado que ainda resiste e nos ensina a permanecer.

Carlos Osório, engenheiro florestal, especialista em Economia Política e doutorando em Ciências Geográficas.&nbsp;Coordenador de Projetos da&nbsp;Empresa Social Territórios Globais TG. Com: Maria Eugênia Guimarães, doutora em Ciências Sociais, e Alexandra Santos, doutora em Artes Visuais

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